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novembro 07, 2008

"Esse Tempo Insondável..." Conto breve (não Sci Fi)

“Esse Tempo Insondável...”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Despedaçada, invadida pelas entranhas; vísceras expostas como caqui despencado ribanceira abaixo. Quase que jazia sobre superfície lajeada, viscosa, eivada de fibras viscosas vermelhas e globulências esbranquiçadas. Ao redor daquele mosaico destroçado, instrumentos pontiagudos de incisão e sondagem perfurantes e ferramentas percussivas em estado de repouso gritante, transpiravam ainda ofegantes. Imersos naquela pulsação sinistra dos atos irreversíveis. A marcha wagneriana de fundo enroscou e emitia guinchos agudos de estourar os ouvidos. Um celular reclamando em sons de urgência.
Bêbado, com seu avental branco entreaberto, a genitália exposta à fresta da persiana que prometia mais calor pelo nublado metálico, ele estava confuso e exausto apoiando-se de costas numa geladeira escancarada ainda, o pulso esquerdo latejando de tanto cortar e mexer e perfurar, distendia-se ao longo do corpo exangue enquanto o direito alcançava o aparelho numa torpeza que se dissolvia – dever cumprido – pelos ladrilhos ensebados, escorregadios. Hora de prestar contas e planejar as ações seguintes, meticulosamente, contra o tempo e as expectativas tão desfavoráveis ao feito, atendeu: Alô! “Tânia, demorou! Operação melindrosa, deu trabalho sim, ufa! Ta feito!”
Cambaleou, tomou mais uma talagada e começou a jogar água naquele cenário que o manteve em tensão ótima até então. Ao passar o rodo lembrou-se que a área externa estava imunda e escorregadia também, mas o sol já ofuscava a vista pela porta de vidro toda embaçada. Pegou o celular, tonto, meio em êxtase. Nem precisava ir pro México, regozijou-se. Tamanha perícia, planejamento e muita fé no seu taco. Riu-se e lembrou-se do perito...Mas concentrou-se em limpar os vestígios todos daquela lambança. Depois arranjaria o resto, telefonaria...Teria esquecido algum detalhe?Franziu a testa, e aquela...:
“Tânia, minha tesuda, quase ia esquecendo, aquela sua bermudinha verde-musgo, bota ela que o almoço vai ser na mesa da piscina. Vou ligar pro meu amigo, aquele perito do churrasco do hospital. Virá com a namorada, ela faz a salada. Não disse que dava um ranguinho tropical hoje? Quer saber, antes de tudo vou me dar um choque térmico! É, um mergulhão de avental e tudo, pra cortar esta narcolepsia, essa aura de lagosta e caldeirada que me descalderou todo”, e gargalhou em disparada em direção à porta da área, sem ouvir o mas o caseiro não vinha pra limpar de manhãzinha?
Vinha.Veio, esvaziou a piscina e limpou toda a sujeira de folhagem do temporal da noite. Foi-se em silêncio. Ficou a foice: uma mancha vernelho-esbranquiçada de um metro e noventa, a três metros da porta de vidro esfumaçada; dois metros e meio da superfície escorregadia. Quase um simulacro do prato exposto sobre a bancada da cozinha, naquele instante em que Tânia entrou, sentou-se em posição de lótus e ficou meditando se fratura de crânio com morte cerebral não podia virar, com o tempo, alguma forma alentadora de...narcolepsia, depois de tudo. Qualquer virada; com tempo. Não irreversível!

8 comentários:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Marco,

Interessante o seu conto. Uma qualidade sua solta aos olhos: aquilo que os teóricos chamam de imagética. Outra coisa.
As frases são bem coesas, concatenadas, sem uso de recursos manjados como: "enquanto isso, seja como for, foi então que, eis senão quando", etc. Parabéns pelo texto. Também o parabenizo pela conquista da publicação na revista organizada pelo Nelson Oliveira. Será um ótimo presente recebê-la.
Wilso Gorj

{Gorj é escritor, microcontista de mão cheia. Publicou "Sem Contos Longos", comanda o site "O Muro" e o jornal " O Lince".}

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Muito interessante, apenas tive algumas dificuldades por causa de expressões/palavras, que são tipicamente brasileiras e a que não estou acostumada. Vai-me safando a época em que via novelas brasileiras e aprendi alguns maneirismos.
Tenho um blogue onde coloco (não está lá tudo) os vários textos e crónicas apenas para leitura como se fosse um portfolio.

Parágrafos Inacabados
http//:paragrafosinacabados.blogspot.com

Se quiseres ver o meu blogue principal, com imagens e texto:
A Páginas Tantas
http//:apaginatantas.blogspot.com

Abraço,
Raquel
(Portugal)

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Olha, acho que foi o melhor texto teu que eu li. Impecável! Sem o menor exagero.
Estou curioso mesmo em ler a revista, já faz um tempo.
Rodrigo Novaes

{Rodrigo é escritor. Vem fazendo a coluna-blog "Superfície Líquida" no Cronópios}

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Show o conto, gostei muito.
Luiz Fernando A.Bueno

{Meu irmão Luiz é professor da FGV, palestrante sobre Sustentabilidade e temas correlatos.Trabalha com comércio exterior em escritório no Brasil.O comentário dele tem, exatamente, metade da extensão dos meus microcontos monofrásicos de dez palavras. Um homem de desafios!}

Pedro B. M. Serrano disse...

Muito bom. Havia lida há três dias e, logo, percebido que um texto como esse, de tamanha qualidade, merecia ser lido novamente. E acabei de ler novamente. Gostei muito. Não houve, de maneira alguma, excesso de adjetivos. Muito pelo contrário, foram precisos e indispensáveis e desenharam (quase que literalmente), no conto inteiro, é claro, mas especialmente no primeiro parágrafo e na retomada de cenário a partir da frase "ficou a foice: uma mancha...", o ambiente em que os personagens estiveram. Isso possibilita ao leitor a exata sensação de suspense desejada pelo autor, além, é claro, da constatação do talento literário deste. Parabéns.

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Olá Marco Antonio

Com certo atraso (muito, na verdade), te mando meu endereço para receber seu honroso exemplar.
Li o conto e adorei. Fiquei tensa e mergulhada, de forma desconfortável, na atmosfera terrível do conto. Estou curiosa para os próximos!
Grande abraço
Judith Rosenbaum

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Votado! Da próxima vez, não comunicarei que votei, blz? Voto e pronto.[Refere-se às exigências do Portal Literal, onde o conto entro na FILA DE VOTAÇÃO]

Já tinha lido esse seu texto. Gostei porque fica uma dúvida no texto todo se o cara tá no hospital (IML) ou na cozinha. Depois é revelado, mas prende a atenção por isso.

Um abraço,

Rodolfo M. Dourado Gomes (do "TURMA3, Yahoogrupos; chefe do cerimonial diplomático e relações exteriores do glorioso tetrês)

Cecilia Prada disse...

Marco


Ressurreição tua, hein? É de arrepiar esse teu conto. Parabéns.
Cecilia Prada