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dezembro 28, 2006

Ilustração:personagem-narrador- ornitólogo- Conto:"Hora e Vez da Pardoca"

"Butaão & Lullismo"_crônica Janeiro/2007

“Butão & Lullismo”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Pensava no Butão, no Reino do Butão a sete mil metros de altitude, lá nos Himalaias do oriente, entre a China e a Índia, sem mar algum. Você pensou num montão de homofonias, é razoável. Inda mais assim, aproximado de um “ismo” tão recorrente presidindo correntes de idéias, associações de pensamentos e atitudes, essas coisas todas. Mas o “butão” aqui não é de se apertar como num controle remoto e implodir o eixo da Economia, tal como se imaginava com a “bomba”, nos tempos da guerra fria.
Mas vamos indo com calma, uma calma quase tibetana para lembrar que houve um mestre de capela, um compositor, nos tempos de Luis XIV e sua corte e as danças instrumentais de então, até porque, em nossa macroeconomia, não se dançou conforme a música, tenha sido qual for no tempo recente. O nome dele – Lully –, seus seguidores – “lullistas”. Eis o que torna razoável alguma confusão, esta que já vai parando por aqui. Mesmo tendo em conta que as danças que Lully “inventou” para a abertura de suas óperas, aí sim, eram tão populares como as cantigas de rua do século dezoito.
E daí? Daí que, durante toda a Idade Média e até mais adiante, já no período renascentista, as danças eram a única forma de música instrumental e os instrumentistas que acompanhavam os dançarinos eram “classificados” como músicos do povo, meio “desincluídos” da categoria de “grandes” músicos. Então, se era em inclusão que pensava (e, convenhamos, só pode haver inclusão se houver inclusão na Economia, com toda essa conversinha de “respeito às diferenças, etc.), então voltamos ao Butão e pronto.
No Reino do Dragão, como é chamado, instituiu-se, a exemplo do “IDH” (Índice de Desenvolvimento Humano) enquanto baliza da saúde econômica de um povo, pois lá se inventou o “Índice de Felicidade”. E nem por isso deixaram de incorporar a ele o carcomido “PIB” e outros indicadores econômicos. Soa como música, pois não?
Agora veja você, aliás, esqueça o “veja” – ouça você no que deu toda a movimentação fervorosa dos alunos e seguidores de Lully: deu nesse gênero a que se chama “suíte para orquestra”, o mais livre e mais aberto da música barroca; coisa sofisticada, difundida pelos franceses em toda a Europa até chegar à matemática musical de um J.S.Bach! À harmoniosa depuração da alegria dos sentidos e não há neurocientista honesto que o possa refutar.
Claro que as pessoas do século dezoito não dançavam ao som das suítes instrumentais, mas o gênero suíte para orquestra conservou a medieval função recreativa da música de dança e, curioso: de tão utilizada como música de fundo em suntuosos banquetes, passa a se chamar, na Alemanha, Tafelmusik que quer dizer, saberia você? Quer dizer exatamente “música de mesa”.
Mais do que há dez ou quinze anos atrás, se nos impõe agora uma pergunta; mais que isso, - um questionamento - aquele que se tornou, a nós, bem pertinente, e justo pela via musical: - “Você tem fome de que?”.
A propósito, a ceia no seio da sua família...Que ceia?
E isso de “inclusão”...Que seio?
E “que família?”, perguntaria. Não.
Não perguntaria
Que algo de Butão “seja aqui”, antes que aquele deserto enorme alcance a China. Se é que você acompanhou o raciocínio sobre o “lullismo” e não andou comendo algum “L” por distração...Ou pelo hábito, anti-lullista, de “ligar o botão do f...-se” para tudo que não lhe invada a soleira da porta ou lhe ameace de morrer de sede.

novembro 29, 2006

Deslizar e tocar

Conto: "Transcurso de Vida" (inédito)

“Transcurso de Vida”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Ninguém aqui pense que é fácil contar o que se deu com o patureba nesta parte do sudeste. Porque também no nordeste de Minas, no sul da Bahia e mesmo dentro dos lares dele, pouco se sabe do que lhe ia pela cabeça. Eu palpito aqui e ali, já que sou escrevente de relatório pra alto escalão, diretoria, gerências; inda assim, mudo o que conto toda vez que somo palpites, acolho as divergências e recheio a argamassa do contado. Dou fé e passo adiante, peneirando muito fino tudo que tem de exagero quando um depoente já vai alto de água forte. É assunto delicado por demais, mexe com o brio de muita mulher correta e pode arranhar a sina de muita criança de origem incerta. Não tem preto no branco no caso dele, não tem registro escrito pra confiar, pra ser oficial. Quem quer remexer a alma de um homem boa praça, cumpridor de pendências com filhos e mães? E trabalhador muito competente em montagem industrial! Muito menos eu, que não conto dele por contar, mas para proteger a honra dele, apesar dos apesares. O principal, que era um peão de trecho e constituía lares. Que joguem a primeira pedra num peão de trecho sempre alegre e muito atencioso, carinhoso de verdade com filho daqui e dali, não importava a geografia nem quem pariu quem. A religião mesmo era o trabalho e, pra trabalhar sossegado tinha uma só condição: fim da jornada, carecia voltar pra casa direitinho, com mulher certa, filhos e domicílio certo. Disso dou fé.
Disse que não conto por contar. Conto por causa do ilícito maior que o patureba fez, sem querer, que não tinha índole, ou querendo, meio distraído; pudera, tanto cachorro diferente pra dar resto, tanto menino birrento, mulher apegada, caixa de correio, presentinho pra cima e pra baixo e catuaba que dispensava... não tem soldador que remende uns mal feitos, mas fora do trabalho, isso é certo, que eu mesmo nunca trombei com ocorrência oficial dele. Confusão da grande, preguiça de pensar diferente com gente desigual. Não estou pra julgar nem pra intimar concidadão fora do operacional, na alma da noite da vida que leva, lá no aconchego dos seus, no caso dele, dos muitos dele. Natural que vivesse apurado, mas não justifica o ilícito que me da razão de contar e de contar direito. Só isso pra retificar, que todo o resto muda. Muda de juiz pra juiz e de comarca pra comarca. Até o que conto muda e segue mudando pra fazer jus, e toda essa alteração, mesmo dificultosa que é, mesmo assim não me distrai.
Pelo começo é fácil entender porque, de primeiro, eu coincidia com o cronograma dele, período por período, obra por obra, empreitada de quem fosse, lá estava o patureba alegre, trabalhando direitinho. Despedindo de todo mundo no final do trabalho, tomado banho, batendo pra casa dele. Isso durou exatamente quatro trechos e eu acompanhei junto porque calhou de ser. Trecho seguinte, lá chegava escanhoado, fala curta e eu que ia já explicando que era o patureba porque nasceu em Patos de Minas. Mas onde pendurava o boné, já que não freqüentava o rancho de costume nem se amuntuava que nem cigano catinguento, nem batia água de faca pra santo nenhum, bem, aí eu já calava. Fazia o meu trabalho e ele o dele. Nem mais nada. E “até mais vê” noutro trecho. O senhor me pergunta se eu sabia do domicílio dele? Sabia só que era certo, falar o quê!
Mas um dia eu cheguei nele. Os dois, torcedores do América, eu sempre fazendo relatório e ele arremate de platibanda, coisa e tal, umas intimidades dele me contar o principal: chegava na cidade, aprumava documento e ferramenta, dava telefonema e...pra praça. Zanzava sossegado, alegrão, sem ficar se amoitando em sombra, sem carteado nem conversa mole. Um olho na camaradagem e o outro no principal. E o principal dele era achar uma esposa-e-mãe. Não tivesse filho, ele fazia, não importava.
Nem confidência pedia nem o tom da voz baixava: - “Se tenho trabalho em altura, eu num prego meu mosquetão numa ponta segura pra poder sair soldando, garantido na linha-de-vida? Então, a mesma coisa quando desço pro canteiro, tiro as proteção e volto pra minha casa”. Eu brincava, às vezes (devia era de fazer mais comentário...):- “Vai, vai um dia lá você e crava o talabarte numa bela duma eletrocalha, cheia de fio com fio; vai confiando na linha-de-vida sem mais prudência, filho com filha de outra... essas coisas s’encostando, sem estrutura nem nada e patureba vira carvão, pras esposa-mãe soprar no vento!” Mas ele só remendava - “Chô sombração! É meu jeito assim, muleta pra quem sabe andar e no mais eu sou confiante, pode escrevê com letrinha e letrona. Ué seu Esfero, nóis é ou num é América de Minas?”. Esfero era minha alcunha, por causa das canetas esferográficas no bolso. E eu era de Minas sim, mas não constituía família em cada trecho de obra que eu assumo. Não sofro risco de um curto, e no mais já é de foro íntimo, como eu faço ou não faço.
Essas intimidades de falar pegamos mesmo no fim do segundo trecho que calhou, cronograma e tudo, hora-extra com adicional noturno, que é quando a alma do peão precisa falar, falar do aconchego que perdia e, outros, do aconchego que pensava que tinha, linha-de-vida perdida na neblina que nos envolvia em conversa miúda de madrugada. Eu, de tanto plantão além da conta, acostumei, mas o patureba sofria de dar dó; era emotivo e carecia relatar até os detalhes de outras obras idas. Eu sempre presto atenção, eu brinco: “eu preciso ser preciso!”. Eu ia vendo que, no caso dele, que não atinava com essas filosofias, era ele que precisava que alguém, fora do trabalho, precisasse dele chegando em casa, comendo quentinho, dando resto pra cachorro, namorando de ranger a cama na orelha de filho, fosse dele ou não, mas tudo num domicílio certo a cada trecho. Eu tinha um certo respeito por isso. Uma vez, no Machado de Assis, eu tinha lido sobre um homem que tinha mais de um lugar onde pendurar o seu chapéu. Não lembro como era o conto, mas essa condição lhe era importante, talvez a principal. As coisas do patureba começavam a girar na minha cabeça e eu quase perdia um pouco de nitidez no meu trabalho. Às vezes me distraía até; telefonema da Bahia, filha de dezesseis já dando neto, filho do norte do Paraná querendo visitar e ele muito carinhoso mesmo. Tinha brigas de marido e mulher, mas não dava pra saber de onde era, de que quadrante, de que região ou época.
Apesar de eu ter estudo, de ter boa caligrafia, de ser muito preciso e definido no que relato, sempre me atrapalho com os nomes dos graus de parentesco.Concunhado, genro, nora, prima de terceiro grau e relações maiores, mais distantes de família, de famílias grandes, tudo isso sempre foi pra mim uma idéia vaga. Filho único, morei com meu pai, mestre de obras, quando minha mãe desapareceu com outro homem, mas...dentro da “própria” família, dizia meu pai, sem muito mais o que dizer. Ele tinha atenção só para o meu estudo, que ele não teve. Era quieto por trás da prancheta, sempre. Sempre que se falava de família vinha um constrangimento; até da minha própria, com mulher e quatro filhas no domicílio de sempre. Vai daí que eu me confundia com os apuros familiares do patureba, na hora de calcular benefícios, preencher os formulários. Na confusão, deixava passar dúvidas em cima de dúvidas, pra não deixar relatórios duvidosos.
Quando minha caçula engravidou, justo ela, a que nasceu sem muita nitidez para mim que já tinha fechado uma família de três filhos, justo quando eu ia ser pai de um filho homem, único neto de meu pai, tive que me afastar temporariamente. E perdi de vista o patureba. Mas foi a divina providência, porque ele, então estabelecido no sudeste de São Paulo, deu pra beber e foi se afastando de algumas pessoas principais de sua própria família. Recebi telefonemas insistentes, a cobrar, lá para minha cidade. Desligava na cara. Não podia ser conivente com o rumo que estava dando à vida dele, bebendo de não voltar pra casa, causando acidentes com solda, engravidando mulheres muito jovens.
No antepenúltimo depoimento que prestei nesta comarca, na presença daquele juiz já falecido, relatei com detalhes os motivos de força maior que me fizeram faltar ao trabalho por alguns dias.
Inclusive no dia em que se deu o acidente com o patureba, aquela desatenção que fez com que ele ignorasse, segundo os relatórios, uma alteração na estrutura onde alguém atrelou o mosquetão dele. A descarga elétrica liberada pela bandeja da eletrocalha tinha voltagem suficiente para levar a óbito quase quatro homens!
Como? Não senhor, não tenho nenhuma relação de parentesco nesta parte do sudeste. Devo acrescentar também que me confundo um pouco com os pontos cardeais, desde que me internaram nesta instituição.
Sim senhor, estou em plena posse de minhas faculdades.

novembro 24, 2006

"Navalha na Tarde"_Conto curto (publicação:coluna "Cotidiano", que assino na revista 'Showroom"_DEZ/06

“Navalha na Tarde”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça...e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
O próprio Domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
A barba e o Domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
O Domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível. – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval. – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não mexe. Barbear é preciso...
- Viver não é preciso!

setembro 25, 2006

"Sexta"_Crônica Out/06_Rev."Showroom"

“Sexta”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Sexta-feira, manhã nublada, era um daqueles dias em que ela mal acordava e, antes mesmo do café solúvel, deixava-se dissolver pelas poucas páginas do jornal do bairro. Sem pressa, sem ânimo, sem prioridades; entre a letargia e um leve impulso masoquista. Pulava o editorial e as primeiras matérias pagas com fotos de gente familiar ao seu cotidiano. Deixaria pro fim os fragmentos naturalistas que lhe devolvessem algum senso de realidade. Pularia a leitura de seu próprio signo no horóscopo e a de seu próprio obituário se fosse o caso, baixa probabilidade, de que o jornal, desculpando-se alhures, fizesse menção à existência dela ao noticiar seu passamento. Baixa probabilidade, pois jornais de bairro não trazem obituários, tratam a morte pelo seu avesso. A programação cultural então, nem pensar. Ficaria aflita com a idéia de diversão compulsória para mais aquele “f.d.s.”. “Ótimo “f.d.s.”! Ou “Curta bem o seu “find”!, era o que lhes desejariam seus e-mails ao final do dia, referindo-se ao sábadoedomingo, inexorável.
Adorava começar e interromper a leitura de mini-matérias edificantes, novidadeiras de ruminações. Suspendia-lhes qualquer desfecho moralizante, rindo-se da idéia, segundo a qual, escrever é como falar sem ser interrompido. Pois não só interromperia como completaria a leitura com um outro assunto qualquer, buscado a esmo, de trás pra diante, de qualquer jeito. Importava manter a letargia plena de significados desconexos, abertos; e que a manhã se mantivesse nublada, sem chuviscos nem meio-sóis.
Se passava algum desconforto numa vista d’olhos pela coluna social, logo o aplacava, divertindo-se: isso sim é que seria probabilidade baixa! Mas, sabe-se lá, por um capricho de angulação imperfeita, em evento qualquer...e ela ali capturada fora de foco, em movimentação bizarra - um escotoma, ela! O ponto cego de um fotógrafo. Foi quando notou, em ângulo aberto, uma figura conhecida, ainda que anônima. Sentiu o reverso de um encantamento, uma familiaridade brutalizada, esvaziada de toda uma certa magia que, certa vez, a recobrira. A tal senhora que lhe parecia tão enigmática na ocasião em que proferiu uma sentença quase mística, oracular como no horóscopo: - “Cuidado para não perder a sua identidade!”.
Foi numa floricultura do bairro (entrara só por entrar) e, logo ao sair, perplexa com a suposta profundidade da sentença proferida pela cotidiana senhora, notou que a carteira de identidade lhe saltava quase um terço pra fora do bolso traseiro do jeans.
E como o incidental da coisa não lhe chegasse a provocar algum riso, da mesma forma não mais prazer conseguiria com aquela desleitura de jornal de bairro.

agosto 17, 2006

Grupo literário "TURMA3"(vide Yahoo groups)em laçamento livro do oficineiro- Nelson de Oliveira

Literatura "Infantil" e Psicanálise-Ensaio sobre "A História sem Fim" de M. Ende

" 'A HISTÓRIA SEM FIM': Ensaio sobre Teoria da Técnica psicanalítica na desconstrução da ficção de M.Ende"

Por Marco Antônio de Araújo Bueno






Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar, aliás, nessa palavra é quase poder tocá-la... tocar o côncavo, sensual e distraidamente, eis um exercício de puro Princípio do Prazer.
Há o contato com o próprio livro, contato materialmente erótico, de cheiro de gráfica, de cores discretas e saborosas, de barulhinhos e sonzinhos da primeira cartilha, da infância. O livro vem de dentro do livro ("... ele agora está nas suas mãos...") e o côncavo se oferece como um figo recém abocanhado. Suculento como um figo, misterioso como uma caverna.
O livro é um brinquedo novo e ocupa muito pouco espaço: ele ocupa o seu próprio espaço de dentro!
Côncavo, caverna, dentro, figo mordido... há também uma razão mais antipática para se propor uma quebra de encanto, uma "lize" do erótico. Trata-se, é claro, de uma razão acadêmica, exorcisante de prazer, que só faz restaurar o convexo. Puro Princípio de Realidade.
Assim, se a Psicanálise que Lacan reescreve, preciosista, barroco, passa como um feixe intrincado de conceitos complexos (se isso é, por certo, quase que metodológico nele), se o "lacanês" é pedante e chato e auto-centrado e delirantemente complicado, isso só acontece porque há um caso de amor. Não se deixa um objeto de amor em mãos inábeis, sob os olhares pervertidos de uma psicologiazinha do ego norte- americana, sob os carinhos grosseiros de um adaptacionismo pragmático e imbecilizante, no colo da mais ingênua "ilusão" do sujeito.
Não é complicado achar em Lacan a assunção de uma hábil e estratégica forma de sedução. A palavra freudiana o toca como uma flauta mágica. Ele não apenas escuta as notas, ele as nota deslizando... metonimizando-se. Entra floresta adentro na melodia, sabe-se perdido e torna-se perdinte instituindo a "beance" , a falta- carbono da palavra. Ele acredita nessa mística xamânica da palavra, e é pela palavra que nós nos perdemos nele.
Eu o reencontro nesse livro, um livro roubado ( "...La Letre Voullé" de Baudelaire), uma história sem fim, como a figura de um pai cristalizado em um subterrâneo dos sonhos esquecidos (o significante primeiro, inadmitido à consciência?), de esfinges que compendem toda a sabedoria e paralisam... pelo olhar.
Como a partir de uma igrejinha dogmática só se avista discursos confirmatórios, os discursos confirmatórios de Lacan estão aí para mostrar que, pior que o puchassaquismo da ortodoxia, é a chatice da ortodoxia do puchassaquismo, o que o próprio Lacan já denunciava como o "não estilo".
O próximo passo poderia ser justificar as justificativas introdutórias. Prefiro, no entanto, sair pelo livro adentro para tentar sugerir uma semelhança: a que se insinua entre o texto (apesar das sinalizações de trânsito que, por questão talvez de segurança, alternam cores de impressão para legitimar ou não a entrada pela fantasia que, afinal, só tem sentido, se for a "minha fantasia") e o percurso do sujeito no processo da análise.
A análise também tem sua concavidade. Não se pode usá-la a torto e a direito. Uma espécie de imanência. Entra-se numa análise pelo meio e começa-se pelo lado de dentro. Um exemplo de abuso dos recursos e instrumentos da análise, no caso, poder-se-ia se ilustrar com uma inquietação, meio anedótica, meio "lingüistérica" :Por que razões (o inconsciente é feito de palavras) alguém chamado Michael Ende (... Das Ende?!) se põe a escrever uma história sem fim? Algo mais sério poderia ser: porque sinalizar os caminhos em um texto mais próximo a uma Banda de Moëbios, sem lado de dentro, sem lado de fora, sem direito e sem avesso, como o próprio inconsciente em seu estado de sótão (tão só) onde Bastian lê o livro, em seus estado de discurso, de texto?
Tenho a intenção de propor aqui algo menos lúdico que esse patinar por livre- associações.Dentre as quatro consagradas modalidades de crítica psicanalítica ( voltar-se para o autor como na "Gradiva" de Jensen; para o leitor; para o conteúdo ou para a construção formal do texto) escolho a segunda, até para privilegiar ramificações intertextuais. Não perderia o lúdico de vista. A propósito desta visada, é bom que se lembre- Kafka disse algo como(...) um texto deveria chegar ao leitor como a notícia de morte de um ente querido...
A leitura desse texto provocou-me certos lutos e algumas escotomizações, uma das quais insejou-me declinar de categorias tomadas às sociologias e às histórias, tão diacrônicas.
Se cada leitura é uma re-escritura, essa minha reflexão sobre o texto do alemão Ende, há de desejar, em fim, uma certa univocidade, um tanto singular; de espelhos, um silêncio potencializado, quem sabe.
Interessante- a linguagem de Ende é absolutamente pictórica e em "Signes", Merleau-Ponty conclui: "... As vozes da pintura são as vozes do silêncio...". Também há um pouco do Borges de "OJardim dos Caminhos que se bifurcam"; intertexto do lado íntimo , côncavo da obra- personagens que se citam de livro para livro do autor. Importa começar pelo meio e entrar pelo lado de dentro. A costura é costura de significantes e o bordado mora no seu avesso.
Bárbara O'Brian escreve também sobre uma viagem psicótica solitária e sobre o caminho de volta. Puseram o livro sob suspeita, afinal, ela ousou voltar e escrevê-lo, algo impensável para uma "esquizofrênica" . Em "Operators and Things", Bárbara está numa estação de ônibus. As vozes (operadores, entidades persecutórias que desenham uma "grade" em seu cérebro e o manipulam como "coisa", como nos "milagres" do presidente Schreber) ordenam-lhe que retire sua carteira de identidade da bolsa e a rasgue. Nesse momento, tudo fica escuro e o chão da estação ergue-se em direção a seu rosto. Bárbara passa seis meses viajando de ônibus pelos EUA e, já no final do "raptus" psicótico, sente que pode escrever à máquina sobre sua experiência... "É como se um pouco de praia seca voltasse após um tenebroso período de maré cheia..."
O cartunista de humor negro- Roland Topor- termina seu livro "O Inquilino" operando em seu personagem um duplo salto suicida da janela do prédio. Primeiro como seu duplo (a fantasia- Simone) e depois, alquebrado e sangrando por todo o corpo, como o próprio personagem (representado por Roman Polansk). Algo como não poder morrer por consignação; é preciso voltar da fantasia, nem que seja só para morrer.
Por aí se vê que as associações estão bastante livres e se retomo o indigesto Lacan é por estar intrigado com algumas contingências evocadas pela obra dele. Uma escritora como Hilda Hilst, para quem Deus é "... uma superfície de gelo ancorada no riso..." (segundo uma equação a que chegou um de seus personagens, Amós Keres, matemático) alguém assim, para quem toda a questão é uma questão de religiosidade (a da "Obscena Senhora D" por exemplo) alguém que sofre as agruras de ver seu texto tido e havido como uma espécie de "tábua etrusca"(sic), tem verdadeira ojeriza ao tom frio, quase que maoísta de Lacan.
Pensando assim, que, de um Lacan autodificultado, não se tira frutos. É uma árvore seca que acaba por esterilizar as livre- associações. Haveria de se tornar, aqui, enquanto instrumento, apenas um breve artesanato de metonímias pluralizáveis, circulares e compulsivas, sem fim? Eis, então, uma história sem final pelos caminhos de uma crítica sem finalidade. História e crítica sem fim.
Ao contornar também o hedonismo festivo, proponho algo como um play-game. Tanto assim, que as regras da segmentação que passo a operar, criam a segmentação como um artefato, ligeiro como um caleidoscópio pode ser, se as mãos que o girarem forem ligeiras igualmente...
Tal segmentação vale-se de palavras chaves, apenas por seu caráter remissível, então:

I) Atreiú - As três portas mágicas
II) O velho da montanha errante
III) A casa dos loucos
IV) A Dama Aiuola - A casa mutante - A mãe
V) O pai - Caverna dos sonhos esquecidos
VI) Volta para o mundo

Se pode ser surpreendente certa obediência à própria cronologia do texto (já que sugiro uma aproximação ao processo da psicanálise) chega a ser espartana a disciplina para não ceder a sedução da simbologia explícita.
A crítica aqui, se infla de indolência. Por uma questão de tropismo, estaria até feliz em tender ao poema. Prefiro, no entanto, segurar-me no nível do "espinafre amarelo", "salsicha escova" ou "pinta-pescoços" (p. 339- fala de Argax) por não dispor de centenas de milhares de anos. E só o tempo dá sentido a uma combinatória de significantes.

I - Pensem no processo de uma análise. Em que pese toda uma gama de motivações pessoais, há apenas uma entrada possível: quando se está captado no próprio jogo de imagens. Vitimado pelo narcisismo, apostando toda a verdade num ego que se acha fonte de significações. Não é à toa que se adoece nesse social, que é uma casa de espelhos cujo morador não mora lá.
Todo o esforço do analista é o de possibilitar via "atenção "Flutuante",distraidamente (já que o social é tão pregnante) uma certa transição- da esfera do pedido (dessa mímica social jubilatória que leva o analisando a identificar-se narcisicamente com o duplo de si mesmo, a uma miragem que lhe permita apenas reconhecê-lo) à esfera do desejo. É dessa alienação que se parte. É por um apelo que ela se dá.
Atreiú, o duplo de Bastian no mundo da fantasia ,funciona como um guia a conduzi-lo para uma nomeação.
Ora, a nomeação funda a própria possibilidade do que Lacan chamou de simbólico e o coloca como a saída do imaginário especular, narcísico, relação de presença. O símbolo que instaura a relação de ausência (já que é presença da ausência da coisa) se dá pela permissão de uma possibilidade de se nomear, agora sim, na esfera do desejo, do deslocamento, de metomímia.
Bastian precisará gritar:- "Filha da lua". É a sua parte no acordo , já que inserido nesse inconsciente-tour intrigante; em alemão "Die Tochter von der Mund". Teria escapado ao alemão Ende a homofonia Lua/Boca - Mund/Mond?
A saída desse imaginário é a palavra. A princípio pede-se ao analisando que apenas fale (já que se encontra captado em sua fala) e se o enxergará caminhando para uma palavra plena- "la parole pleine", conforme Lacan.
Rompe-se o imaginário pela boca. Há uma rainha-criança(!) que compende toda a órdem (Simbólico) no mundo da fantasia. Bastian caminha, como numa análise, em busca de providenciar sua própria inserção nesta Órdem simbólica. D
Antes, porém, Bastian-Atreiú haverá de se confrontar com as esfinges, o espelho e a porta do silêncio Prova-certificado da saída do imaginário? A propósito Lacan afirma que não basta que o in-fans se veja "se"vendo no espelho, é preciso que ele se veja sendo visto pelo olhar comprobatório de um outro.Isto o retira da fragmentação do Imaginário.
Até então, Bastian-Atreiú se vê claramente subjugado à mãe (detentora do falo). O reencontro com o pai (cristalizado tal como se pode pensar de um significante primeiro) reporá o falo em seu devido lugar. Para chegar a essa substituição de significantes, para chegar a essa metáfora paterna que lhe permitirá, por fim, voltar ao mundo, Bastian deverá passar pela prova dos olhares das esfinges (... "E elas não vêm nada. Mas o olhar delas a tingiria da mesma maneira" (Enguivuck) -a prova do espelho (penetrar em si mesmo como na análise) e a última das portas, a que... "só aparece depois de se ter passado pela Segunda" (idem, p. 85). A passagem por esta porta, esbarra no silêncio da fantasia (o analista comete silêncios significativos) que é para Enguivuck "absolutamente indestrutível".
Se isso não lembra a recusa do analista em fazer concessões ao "pedido", ao sintoma enquanto queixa, o trecho que se segue torna a analogia mais clara: "Quanto mais queremos entrar mais hermética se torna a porta. Mas se alguém conseguir se esquecer de todas as suas intenções (Ego, imaginário, ilusão do sujeito) e não quiser absolutamente nada (associar livremente idéias)... a porta se abrirá sozinha perante essa pessoa.".
É claro que me recorda Nietzsche (o meu corpo-grande razão-tem idéias diferentes de mim) mas há de se reconhecer também certa esterilidade de algumas das aproximações aqui sugeridas. Daí, penso que seja infrutífero julgá-las dogmática ou canonicamente. Afinal, a "curiosidade puramente científica" de Enguivuck não o levou a conhecer Uiulala!
Tentadora a aproximação entre o "diálogo" de Atreiú com Uiolala e a Teoria da Técnica psicanalítica no que diz respeito ao contato analítico (vide Freud, in " Conselho aos Médicos...")
"Quem sou eu? Murmurou (Atreiú, que à pergunta "quem é você" recebeu um eco "quem é você"?) Um analista poderia dizer como Uiulala:
" Pois aquilo que não escuto em verso (relevo fônico do significante) entendo sempre de modo diverso (pregnância do social)"; ou, "Quem sabe é quem? Agora te entendo bem". Uiulala, a voz do silêncio, continua como em um contrato analítico: -"Mesmo que não me vejas/ Ainda estarei lá". Mostra ainda que é apenas um ponto na cadeia de significantes, um representante da ordem simbólica, um semblante, fazendo o gosto da rima: "... não sou visível na luz/ Como tu és ao te olharem (social)/Pois meu corpo é nota e tom/Por isso apenas audível/ E nesta voz tens o som "do meu único ser possível".
Faz-se o convite ao simbólico: "Porém, se novo nome encontrar-mos/ Seu mal será logo banido" (a relação dual, o imaginário na relação simbiótica com a mãe romper-se-ia e daria lugar a palavra). Lembra, também, a essência do processo:- "E tudo dependerá/ de seres capaz, ou não"; e, finalmente, propõe-se como ausência:- "Tal resposta a ti te cabe/meu dever é avisar/chegou a hora, já é tarde, já é tarde/ temos de nos separar"
Poder-se-ia também aproximar a concepção lacaniana de Tempo lógico, com a fala de Enguivuck (p. 104):
"O espaço e o tempo, disse Enguivuck, eram talvez diferentes no lugar onde você esteve..." O inconsciente desconhece tempo cronológico e categorias de negação!

II - O velho da montanha errante.
Nessa passagem, Bastian emerge aos limites do consciente, e mergulha na fantasia, como leitor e personagem, numa infinita cadeia de ler-se lendo. É o ponto de tensão maior, quando em ultima cartada desvenda-se o eterno retorno, o fim e o princípio que deixam de existir em pró do círculo: são as cobras se comendo que formam o Aurin. Voltando a questão da análise, refaz a vivência da compulsão da repetição, que traz sempre o presente resignificando o passado e lançando para o futuro o que se fez em passado. Isso engatilha a idéia de que os futuros vindouros serão apenas nostalgia de algo perdido. Assim é que, na seqüência d'A História sem fim", quanto mais Bastian "cumpre" seus desejos, mais seu passado é apagado e menos capaz de desejar ele se torna, ou seja, não há desejo sem memória: "a esperança é a saudade virada ao avesso."

O paralelo traçado aqui entre o processo de análise e a trajetória de Bastian aponta necessariamente para uma diferença sutil: Bastian não inventa seu percurso, ele o recria e o refaz. A busca aparentemente eufórica no texto corresponde a um desejo de busca que perpassa o texto, refaz um percurso e ancora num significante.
No mundo da fantasia, portanto, não há lugar para o acaso, que só se dá na diacronia e no sintagma(vide Jakobson, um outro Roman...in "Lingüística e Comunicação") e precisa do contrapondo da realidade para a concessão de toda a sua carga de "loucura" que dele deriva. Ou seja, ali onde os significantes podem dançar em entrechoques, atropelarem-se e saindo de cima voltarem por baixo (Banda de Moëbios) não há lugar para surpresas. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:- "Ora, na realidade estamos à sua espera há muito mais de cem anos, respondeu a mulher. Já a minha mãe, e a minha avó, e a avó da minha avó esperaram por você. Veja bem... estou contando à você uma história que é nova e, no entanto, refere-se a tempos muito remotos".
Enfim, é como se o passeio de Bastian fosse a hipérbole de um reconhecimento que, em dado contrato, corresponderia aos "insights" do analisante , rumo à idéia ("Angst") de como a sua liberdade é algo muito mais restrito do que ele supunha. Só há liberdade, a propósito, dentro dos limites deste confinamento estrutural, lingüístico (vide "Cours de Lingüistic General" de Ferdinand Saussure), aliás!

III - Se a única possibilidade de liberdade radical reside na loucura (na medida em que ela se instale no "reino da semelhança", no "eixo paradigmático", conforme explica Michel Foucault n'As Palavras e as Coisas") e se nada ao acaso ocorre, Bastian tinha de se defrontar com o medo da insanidade, pelas mãos irônicas de Ajax. E aí que ele se encaminha para a "Cidade dos Antigos Imperadores". Local reservado àqueles que, ao perderem totalmente sua memória, são desligados do "mundo" e tornam-se incapazes de "desejar". Só se deseja aquilo que já se conhece. Apagar o passado é impossibilitar o futuro, e se perder no paradigma, que é a própria loucura. Para eles só resta brincar da paradigma (jogo de letras, o "estado de dicionário" a que aludia Drummond, a palavra "in absentia") até que alguns sintagmas comecem a surgir, e quem sabe forme-se outro livro. Há sempre a alusão a princípios, nada é final absoluto.
A saúde mental de Bastian está no horror que a cidade dos loucos lhe causa. É só o seu pavor ao vazio que o breca em seu insano caminho pela fantasia. Restam-lhe apenas poucas lembranças, mas agora compreende sua peregrinação. Até então considerava-se o mais sábio da Fantasia, tanto que almejou o poder supremo pertencente a "ilha da Lua". E torna-se, agora, o mais miserável na fantasia, pois busca algo que já não se recorda, e vislumbra, no futuro, o desvario. Tal como Édipo, cujo drama, bastante próximo, se desenrola todo no decurso de apenas um dia.

IV - Todo o percurso na análise não passa de uma revisitação, via transferência, às figuras parentais, arcaicas. Se, pelo início dessa reflexão, falou-se de imaginário e simbólico, nessa ordem, é porque a primeira tarefa existencial é alienar-se num desejo de um outro materno. É enquanto a criança almeja tornar-se objeto de prazer e gratificação de uma mãe, marcada pela carência do "falus" ("penis-neid", para Freud)) que se pode pensar no registro do imaginário: a criança vive simbiótica e indiscriminadamente, o drama de submeter-se à mãe como representação do falus que lhe falta. É exatamente o que Bastian, num primeiro momento, vivencia: Veja-se o diálogo sobre a questão das frutas: -"Não sei, disse Bastian perplexo. Não se podem comer coisas que crescem em outra pessoa. Por que não? Perguntou a Dama Aiuola. Os bebes também mamam o leite de suas mães. É uma coisa muito bonita./ pois é, interrompeu Bastian, corando um pouco, mas só enquanto são muito pequenos./ Então, disse Dama Aiuola radiante, você precisa se tornar outra vez pequenino, meu lindo menino". Toda essa dinâmica tem início em uma separação: a mãe vê separar-se de seu útero a criança. O útero "é maior por dentro do que por fora" (p. 356), como a casa mutante do livro de Ende.
A Dama Aiuola é a imagem da sedução que se constituiu para o intrigado Bastian na idéia de uma mulher gerando frutos de seu corpo inesgotavelmente. É a própria captação no "Éden" do Imaginário. No entanto, na dinâmica do Édipo está implícita a idéia de que só se pode sair do narcisismo, do erotismo simbiótico e dual, enfim, só se consegue amar (no sentido de investimentos objetais) quando se rompe o idílio do imaginário com o estabelecimento de uma triangulação. Deverá haver um terceiro social a mostrar à criança que ela poderá ter o falus e o amor se renunciar a ser o falus materno, e sucumbir às instâncias pré-simbólicas. Novamente há o paralelo com o caminho de Bastian que, ao sentir necessidade do amor, está pronto para quebrar o idílio da casa mutante e partir em busca das águas da vida.
Bastian descobre seu último desejo: amar. Para isso deve se encaminhar para a Fonte da Vida:- "Só poderá fazê-lo quando tiver bebido das Águas da Vida, respondeu ela, e não pode voltar ao seu mundo sem levar dessa a um outro" (fecha-se outro círculo). Bastian deverá separar-se de Dama Aiuola:- "Só preciso de alguém a quem possa dar o que tenho a mais"', ela lhe diz, quando a mensagem poderia ser: "a minha carência constitui você como objeto da minha falta, daquilo que tenho a menos".

V - É preciso que se escave fundo no terreno das fantasias para que se chegue ao que Lacan chamou de "point de capiton". Lá, onde se ancora o significante primeiro, o significante "Nome do pai" ("Le nom du pére"). Bastian deverá descer mina onde jazem os sonhos esquecidos- substrato da fantasia- para alcançar esse Pai que é possibilidade de nomeação. Tendo, portanto, contornado a psicose (é por não ter "foracluído" tal significante que seu retorno é bem sucedido) e emergido do imaginário, que Bastian descobre esse rosto triste de pai cristalizado na placa de mica. As últimas linhas do livro dão conta do retorno de Bastian à realidade e da presença de um pai que também precisou ser redescoberto e que, por fim, lhe concede e lhe permite a possibilidade de autonomia: agora Bastian pode se autonomear e nomear sua própria falta, última etapa de uma análise. Bastian é, então, essa espécie de pervertido, porquanto a sua viagem toda não tenha passado de uma versão da fantasia em direção ao simbólico. De uma versão para o pai. De uma "pére version".

-"Há muitas portas para a fantasia meu rapaz. Há muitos outros livros mágicos. Muitas pessoas nunca percebem isso. Tudo da pessoa em cujas mãos o livro vai parar".
Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar,nessa palavra é quase tocá-la... tocar o côncavo, sensual e distraidamente- eis um exercício de puro Princípio do Prazer...

julho 25, 2006

"Gordo"_Crônica Jul2006_Coluna "COTIDIANO" da revista "Showroom"

““Gordo!”




Acho que estamos às voltas com um novo patamar ético,
quero dizer - nas nossas escalas de valor. Acho que achei, pelo
menos, uma palavrinha, um adjetivo potente e explosivo que aponta
para a pontinha deste fenômeno. Foi por acaso, vinha dirigindo para o
consultório após o jogo contra o Japão. Trânsito tumultuado, eufórico
e nervoso. Gente querendo escapar da folia da comemoração e muito
mais gente tentando impedir que isso fosse possível. Então, por um
pequeno trecho do caminho, mais fluído e tranqüilo, senti que havia
uma” pedra “: uma garota cortou a frente do motorista da pista ao lado
e ouviu dele um desaforo imbatível: -” Gorda! “. E então ocorreu o
mais inusitado, o tal fenômeno. Veio de um “comemorante” trincado de
todas as marcas de cerveja: - “É gordo, mas faz!”.
Era o ano de 2006 (disso eu sabia) e rolava um
campeonato mundial de futebol muito mundializado e, quanto a isso, eu
já tinha outras referências temporais mais remotas - achava que havia
começado no início dos anos noventa do século passado e remetia a
protagonistas estranhos ao mundo do futebol, como uma “dama de ferro”
e um ex-ator, então presidente dos EUA. Mas na vida das minhas
fatigadas retinas, jamais esquecerei a fisionomia da garota
ofendida...mas nem tanto, e isso me intrigava. Lá estava ela, vestida
com a camisa nove e mais as estrelas de todas as marcas de banco,
petrificada e perplexa, entre um desaforo tão moralmente estético e
uma apreciação atenuante, tão benevolente quanto eficaz.
Um paradoxo, caro leitor! Estivera diante de um
curioso impasse de natureza estritamente...ética, vá lá. O desaforo
do motorista - amortecido, neutralizado quase, pela lógica da velha,
mas nem tanto, política de resultados. E eu todo intoxicado pela
mídia do espetáculo, confuso no meio da galera e filosofando
bovinamente, extemporâneo, pra japonês ver. É que o “homi”, não é que
fez, e depois fez de novo? Em plena Quinta-feira gorda e eu lá,
abafando uma gargalhada e analisando um fenômeno novo que acabara de
presenciar: fulminante dieta moral recompensa auto-imagem de mulher
xingada com tanta crueldade, apesar de sua quase anorexia sarada.
Muita corneta estridente saldando o meu pavilhão auditivo; martelo no
estribo e minha paciência na bigorna.
Agora que já é inverno, férias escolares (essa moçada
precisava descansar mesmo, já que este ano não dará trégua...) e eu
sobrevivi às profundezas das minhas análises porque subi os vidros e
coloquei o “Inverno” das “Quatro Estações” do Vivaldi no toco pra
seguir caminho, agora sim, podemos passar uma régua no pagode e
pensar com serenidade nas conseqüências da tal Cláusula de Parreira,
de Barreira, perdoe. Aquela que oferece ao candidato da oposição o
dobro do tempo de propaganda televisiva, sobre o da situação. Que
situação! Isto sim é “show”, porque “show” é ganhar e ganhar é
muito “show”. Ocorre que ninguém é “mané” a ponto de jogar pra
perder; perder seus curraizinhos regionais, além da própria eleição
presidencial...seria coisa de “mané”, num país sobre cujas
prefeituras municipais, a corrupção campeia, perdoe, vigora, num
patamar estatístico além dos 70%. Parece mesmo que o que não mata,
engorda e o que engorda é “matador”...De “mané” só sobrou o
Garrincha, para o orgulho do nosso Pavilhão. Mas não pra saúde dos
nossos fatigados ouvidos, nossas Trompas de Eustáquio.
Portanto, leitor, que entre a “Primavera” do Vivaldi
pela primavera eleitoral. Até porque o nepotismo fará entrar pra
máquina estatal, muitas primas e primas das primas de muitos
candidatos, assim, eleitos. Se futebol é caixinha de surpresas,
política é coração de mãe; acolhe e alimenta seus diletos.
Especialmente, permite gerá-los em suas Trompas de Eustáquio, de
Falópio, perdoe, pela última vez, gordo leitor. E não se ofenda,
porque lhe ofereço este “gordo” como uma espécie de “valor agregado”,
de sortilégio. Uma lembrança da Copa, na redenção da cozinha.
Pois assim começou essa conversa, com a idéia de uma
espécie de salto para um novo patamar ético que se deu pela inversão
de sinal de um valor estético, sob um pano de fundo caótico da Copa
do Mundo, marcada pela lisura da bola e pela altura da grana, grama,
mil perdões!
Apesar de todo o ceticismo quanto à lisura –não da
bola, o jogo da linguagem não é apenas um termômetro, um
estetoscópio, uma balança...vá lá. Em que pese todo o atual cenário
de lambança generalizada, significados novos emergem do cotidiano
mais pueril, mais prosaico mesmo. Doravante (que palavrinha mais “pra
cima”, não!), quando alguém gritar - “Gordo!” este estigma vocabular
não vai soar como antes. Soará, talvez, como...suor, como superação
de lágrimas. Só o tempo poderá mostrar as condições de emergência
desse novo “gordo”, nem que seja pela autópsia dos bastidores
do “show-resultado”. Será preciso mastigar bem a palavrinha renovada,
até para extrair de seu entorno algum saber, ou qualquer sabor, o que
dá no mesmo.
Será preciso investigar a que ganhos leva o ganhar.
Ou descobrir o que o “professor”, o “homi” mastigava metodicamente lá
do banco (de reservas, do jogo) para gritar suas palavras de ordem. E
se há uma palavra de ordem no momento, esta palavra é “votar”.
Sempre, e sem muitos advérbios de modo. Tudo o mais é burrice. Pura
burrice!
- “Dê show!”, mastigou o “Homi”...
Aliás, perdoe.

junho 22, 2006

"Agenda"_ Oficina-Mote: Depressão, pressão...

“Agenda”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Depressão é a Quarta da semana
Espremida entre uma segunda Terça
E outra Quinta que profana
A sexta em que a precipita.

Vem de pressão em pressão, decaída.
E cai, despenca; rebenta balaio consumido.
Precipitação de um fora para o fundo
Liquefeito na evasão insana. Um Sancho
De Quixote prescindido.

E emenda vazios com vazio não cerzido.
E no frio, respinga ainda suor na agenda,
Comprimindo risco, cuspe e fato
Num garrancho esquartejado.
Compreensão? Coisas da vida? Não!
Depressão é a letra tremida.

junho 08, 2006

"Odisseu" _ Mote: Clichê no cinema_Oficina 08-08-06

Odisseu

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Ele estava imbuído de um estilo Chacal.
(Confeitos de cânhamo embebidos em mate);
Vestiu rigoroso traje anti-suspeição e o retocou.

Ganhou a rua, solene, dobrou a echarpe; café!
Acenou ao táxi que não parou, seguiu a pé.
Economia de atos, beirava o trivial, rito e rigor.

Transeuntes pelo museu, ele em transe, trivial.
Pés e mãos gelados em pleno local calafetado.

O cânhamo dilatou a escultura do Canhão. Acenou:
“Leve a peça até a moto, lado a lado, comigo, espeto-lhe!”

Na saída, desarmado da caneta Picasso que nada espetou,
Só via o Canhão reposto ao pilar, soar de sirene e camburão.

Em cana, em fim, apenas uma beatitude e cabeça oca.
Suspeitou: há xixi no traje todo; irretocável. E sorriu.
Depois chorou, exausto. Pediu um mate, alguém gargalhou.







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maio 15, 2006

"Baiacu meu"_Oficina_Mote: Narrador calhorda e animal bizarro

“Baiacu meu” ·
Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Digo que é meu porque, enquanto tema, quem tem Baiacu tem medo, e temo que já tenham visto o baita Baiacu do João Ubaldo escancarado na Internet. Muita coisa a respeito do peixe por lá: tem o Verde, o da Amazônia, tudo descrito, classificado e com os nomes oficiais.
O meu é bizarro. É aquele que tem cara de diabo com dois chifrezinhos e tudo.
Meio quadrado e acinzentado, tem uma nadadeira pífia, curtinha demais, o que o torna vulnerável demais à correnteza, à força das águas agitadas. Se tal condição o favorece, se é coisa de sobrevivência, já é assunto de biólogo. Se lhe crava um certo “devir”, se é um capricho desleixado da natureza, já vira coisa da minha praia aqui. É certo também que possui os quatro dentinhos afiados do Baiacu do grande escritor, por isto o chamei (não ao Ubaldo...) de baita Baiacu, bem entendido! Pois bem, quatro serrilhas, ávidas para corroer cabos, redes de pescaria e até anzóis. Não obstante, bem entendido, o meu bizarro animal, eu o denomino Baiacu-estorvo. E vamos deixar de lado os Chicos, o poeta e o rio, que o escrotinho aqui estorva em água salgada, oceânica mesmo. Razão singela: jogou a tarrafa, pegou Baiacú bojudo, cinzento, dois olhões esbugalhados...pode desistir da pescaria. Resta o espetáculo patético de vê-lo inflando-se todo e expondo uma manta de cílios molengas à guisa de espinhos assustadores Seriam mesmo? Haveria veneno neles ou, onde o veneno espreita?
Bem, embora se alimente de algas, crustáceos e demais frugalidades marinhas, é certa a ocorrência de muitos dejetos e dejetos pelas quebradas por onde balanga seu estúpido rabicó, digamos...em vão. Pois, desengonçado, desproporcional e desnorteado, vive à mercê da vontade aleatória das águas. Quando termina na areia, nem por isso morre; tem uma sobrevida e tanto no seco. Fica se inchando, ridículo, frente à ameaça de uma pisadela a esmo, que nem quando bem aplicada o fará sucumbir de vez.
Escolhi meu Baiacu pateta bem antes de trombar com o olhaço do João, e sei dessas coisas pelo Fabrício, o piscicultor iletrado que teimou em não vender seu peixe:
- Só estrova, num assusta nem minino porque já feio, mas feio feito o diabo, nem carecia se estufar, o besta. E isso aqui tudo ó, pode por a mão...é espinho? Escovinha de dente, tem veneno nada, num espanta, só estrova.
- Mas, Fabrício, nenhum bicho se defende em vão, quer dizer, fica fazendo coisa que não dê certo pra ele se manter. Pode não assustar gente, mas, sei lá, deve ter função no ecossistema dele, pra pássaros que vêm bicar na areia...
- Essas miudeza de mei ambiente eu num digo nada, vá lá, tem sina pra tudo, bem entendido. O que me inrrita é que o bicho se acha...
- Como? Se acha o quê?
- Um ouriço, tem base? Só que espinho de ouriço dá febre. Esse aqui nem se pisá nele, nem morre. Que nem piranha, só que num assusta nem minino.
- Dá pra comer?
- Nada, num presta. Aproveita nada dele. Num tem serventia.
- Comparado com...
- Ô, com Pirarucu, que aproveita até a cabeça pra fazer pirão. De água doce, bem entendido! Se salgá, vira bacalhau de baiano...Deste tamanho, o bicho! Vivente sozinho num dá conta de carregá. Pra pegá, lanceta o bichão quando sobe.
- Bom, não vou levar mesmo. Aquário de água salgada é um trabalhão. Tinha achado ele meio exótico, bem monstrinho...
- É, mas nem pra monstrengo o mostrengo serve. Leva o Palhaço! Péra aí, alô! Não senhor...sim senhor, não, não senhor, não to interessado. Não senhor, to ocupado...não quero, não, obrigado e vô desligá essa merda agora!
- Telemarqueteiro, cara?
- Baiacu de telefone fixo! Oferece tudo, até túmulo. Túmulo.
E até tu, mula da psicanálise, desmontador compulsivo de peixes-palavra, cada idéia! Tu, que “se acha”, a ponto de pretender dar conta, sozinho, do teu baiacu literário, justo agora tem que te ocorrer a infâmia! A infame anedota, agora...”aquela” do homem que procura uma podóloga e ao escutar desta que ele tem olho-de-peixe esbraveja: “E a senhora tem cara de piranha!” Ora, nunca tive pena alguma de telemarqueteiros, ao contrário, supunha neles alguma vocação atávica ao estorvo, e os estorvava, com requintes...cada idéia! Empatava-lhes o tempo que me surrupiavam com requintes, com técnica. Fingia estar ditando textos a alguém, pedia-lhes “um minutinho”, “aguarde um instante, por obséquio”, e sapecava-lhes trechos do mais barroco “lacanês” (“... a palavra é a presença da ausência da coisa”), “um minutinho...” Ou então, as “Torturas Suplementares”, caudalosas, d “Os 120 Dias de Sodoma”, do Marquês. Retribuía a fealdade existencial dos telebaiacus com os “atrativos sexuais da fealdade”, escorado na Simone do Sartre e, quer saber, até que me achava generoso demais. Imaginava-os meio sadomasoquistas trancafiados em meio/ambientes com um PC e telefone, monitorados por vídeo e áudio, engolindo dejetos e dejetos verbais, e vendendo o peixe dos outros. Confinados nas “baias” (assim as batizaram), com cara de palhaço e, ao fim do dia, com toda força de trabalho deles à deriva, o que foi feito de suas almas? Baia “cumeu”, diria Fabrício, pouco afeito ao “Homo Fabris”; e que não vendia o próprio peixe. Mas eu, não. Generosidade - sinalizo aos baiacus como um farol. Mas, convenhamos, escrever um diário deste farol, seria luxúria. Ainda que pífia, se comparada a dos libertinos de Sade...

abril 21, 2006

"Gagueira Fundamental"_crônica Maio/06

“Gagueira Fundamental”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

A expressão não é minha, pertence ao G. Deleuze, filósofo contemporâneo que bate duro contra os conformismos conceituais e fustiga as bizarrices desta nossa hipermodernidade tão tagarela, tão exuberante em respostas pra tudo e tão... lacunar. Lacunas abissais de sentido, no jeito de consumir e expressar idéias e afetos. Gagueira, aqui, não é coisa de fono nem de generalismos psicológicos. É atitude! Forma de resistência contra a fluência domesticada. E foi outro filósofo de prenome abreviado “G”, outro Gilles, o Lipovetsky, quem cunhou “hipermodernidade” bem a propósito de uma analogia com hipermercado...
Não é minha, mas me pertence por dois motivos. Primeiro, eu a adotei, e só não a tenho praticado pra fazer compra básica, ir ao banco ou abastecer o carro, coisas que não me tomam muito tempo. Segundo motivo: estou ficando gago, cada vez mais gago, e de propósito!
O pano de fundo da resistência proposta por G.Deleuze é a obra de arte, e ele vai fundo na postura de transgressão, que constitui a potência que a demarca, na linha direta de Nietzsche. Pega o “ponto G”, pra não perder nem o trocadilho nem a alusão a uma espécie de orgasmo do sentido, embutida em seus “agenciamentos” filosóficos. Para o que me interessa aqui, o contexto é a comunicação, e a postura (esqueçam “atitude”, palavrinha já reabsorvida e estéril) é a de emancipação. De quê? Do tédio, no mínimo. Ou, pra ficar mais elegante, da colonização dos meus atos de fala, por uma espécie de eloqüência pré-editada, essa que me obriga a dizer conforme. Tirante as saudações (Alô! Bom dia!, Belê?) e a burocracia dos formulários verbais, considero um delito grave preencher silêncios com a verborragia prescrita pela cartilha do papo-jacaré, contra a fobia do não ter o que dizer. Pois é prescrição mesmo, com poderes de regulamentação do ritmo, da velocidade, da adequação às circunstâncias e, pior...do que deixa de ser falado pelo fluxo da própria falação.
Falar-se pra manter-se incomunicável, já que, tamanha é a excessividade de tudo, que a própria ameaça de silêncio conspira. A gente passa um rodo nos fragmentos de informação do dia, retira-lhes qualquer contexto, separa tudo em bloquinhos e gruda neles alguns adesivos ou ícones, como rótulos bem práticos. Agora é só esperar uma sinalização, uma ameaça de conversa e pronto, o “kit blábláblá” estará operante. Contemplamos pouco, refletimos menos ainda. E falamos pelos cotovelos. Incomunicabilidade - palavrão, pois sim, hiper-palavra pra palavra pouca.
Estamos vivendo rente ao fantasma dos fatos; os fatos perdendo sua carga de significação para as imagens e estas, pulverizando-se, substituindo-se umas às outras, viram borrões isolados. Para nos orientarmos, apontamos para borrões e emitimos ruídos. Quando decodificados, temos a ilusão do diálogo, da troca simbólica. Na verdade, permanecemos mudos.
Pois estou me desobrigando de responder a esse padrão de mutismo ruidoso. E apresento-lhes esse meu “des-falar”, sob a forma de uma gagueira subversiva. Com funciona?
Bem, de cara é necessário uma não aceitação fundamental: a de submeter o que há de singular em mim (dimensão estética) e de outrem (dimensão ética) ao idêntico. Não se trata apenas de “respeitar” a diferença, é preciso trazê-la à visibilidade escancarada, cutucá-la com a vara curta do silêncio, das pausas longas, da recusa ao tatibitate marmanjo habitual. Isto é gagueira.
Ao contrário do que se pensa, os vacilos verbais recheados de gíria e outras embreagens coloquiais (dos muito jovens, por exemplo), a titubeante falsa modéstia dos “operários-padrão” da linguagem dominante (das celebridades sob holofotes, por exemplo) e outros estereótipos da má fluência ensaiada (do pseudodiscurso acadêmico dos economistas, da pseudo-religiosidade dos vigaristas do ramo da fé, da indignada “moralidade” de políticos golpistas-o “exemplo”, por excelência...), nada disso é, aqui, o que chamo de gagueira. É tudo jogo de cena ou malvadeza retórica. Comparados às esquisitices de linguagem que brotam nas salas de bate-papo, estas lhes superam em riqueza pura, verdadeiros diamantes do tesouro da Língua, e ponto.
Só pra ilustrar a idéia dessa gagueira, imaginem o Pivô, o competente entrevistador da TV francesa (separando bem o Jô... do trigo), todo hiperbólico e loquaz entrevistando uma conhecida escritora. Ele esperneia palavras, pergunta o imperguntável, abusa do lugar-comum, vertiginosamente palavroso. Ela (incomum, singular, reflexiva) subverte o tempo televisivo, comete longas pausas, pensa longo e responde curto, reticente. Questiona-se vagarosa e docemente, repete finais de frases, incorpora e sustenta a fragilidade do dizer, silenciando a platéia. E Pivô? Pouco riso e muito siso.
Responder questionando-se a si próprio no outro, eis uma nobre estratégia de gagueira. Uma “nanoprofilaxia” contra os microtraumatismos de todo falar esvaziado. Gagueira.
Dizem que é coisa de analista. Concordam com isto? Faz mal bater um papo assim aflito com alguém? Aflita, Hilda Hilst confidenciou-me certa vez (se é que faz sentido juntar confidência com Hilda Hilst...) que um escritor não deveria dar entrevista: “(...) é muito difícil pra mim... falar, falar das coisas que não se esgotaram no escrito (...) falar de mim, que escreve...”.
Inventaram um guarda-chuva que avisa quando vai chover! E se não chover? Você o carrega fechado, claro, até ele avisar. Então você o abre até que pare de chover e depois o fecha quando a chuva parar, embora ele não avise que a chuva parou. “Será que vai chover?” Já dizia o Lobão - o compositor, e emendava: - “Eu acho que vai chover”.A música falava da mulher que “despistava” o tempo todo, diante de um cara carente de atenção. E a gente anda carente de inventividade. Gaguejar é resistir, deixar pistas de si pelos cotovelos e descobrir a toda a carência sob guarda-chuvas que não avisam nada, e vivem esquecidos pelos cantos.
A propósito, boa Páscoa! Que já passou mesmo. E poupem meus ovos, se não...

abril 18, 2006

Tive um Sonho Estranho_ Ensaio p/revista "ETD-Unicamp

ENSAIO
Área temática: Estudos Piagetianos & Psicologia Genética e Educacional
© ETD. Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.1, p.107-111, dez. 2005 – ISSN: 1676-2592.. 107

TIVE UM SONHO ESTRANHO

Marco Antônio de Araújo Bueno

É curioso como esta expressão precede quase sempre a narrativa de um sonho!
Mesmo com pacientes acostumados a sessões de análise onde se procura, depois de
minuciosas explicações introdutórias, “desconstruir” essas engenhosas e intrigantes
formações da alma.
Não é por falta de espírito científico também,que emprego aqui esta palavra;ela foi
eleita pelo Dr. S. Freud para designar o “teatro das operações” (perdoem esta misteriosa
analogia bélica...) dos fenômenos psíquicos.
Não esperem cientificidade destes meus comentários. É que proponho apenas,
enveredarmos juntos pelos fascinantes meandros da cotidiana função de...sonhar. Não
queira, leitor pragmático, convencer-se de que não sonha;nem,leitor romântico, confunda o
sonhar com almejar ou idealizar.Como já estabeleci antes, trata-se apenas de uma função
psíquica, imprescindível à saúde da alma, tal como o dormir o é para a saúde do corpo!
Retomando o emprego da palavra alma, originalmente proposta pelo pai da
Psicanálise,é interessante constatar que, foi por ocasião da enlouquecida investida nazista,
quando não só os judeus e homossexuais foram perseguidos mas, também as idéias
“exóticas” e a obra de Freud, que estas, entrincheirando-se na Inglaterra e fugindo da
fogueira, foram revestidas por um criterioso e “mentalista” manto de cientificidade, dando
origem às difundidas palavras anglo-latinas “ego”, ”id” e “superego” em lugar de “eu”,
”isso” e “supereu”.
É, portanto da sua e da minha alma cotidiana que nos ocupamos em
desvendar.Menos ,em tratar aqui com um prudente afastamento do divã. A propósito,
quando o dr. Freud percebeu que, a julgar pela indiferença e desprezo da comunidade
científica da época por seus acha – dos teóricos, estaria pregand o no deserto ou falando às
paredes, deslocou o eixo de sua escritura,voltando-o imediatamente em direção ao grande
público, ávido desde sempre por conhecimentos dessa natureza.

Fracasso de crítica (pelo menos, da academia médica) estouro de vendas, o seu “Die
Traumdeutung” dobrou o novo século festivamente acolhido pelo leitor leigo,tal como
aconteceria com um outro texto fundamental para a Psicanálise1. Citei o nome do primeiro
em alemão em vista da duplicidade e abrangência de sentidos: ”A interpretação dos
sonhos” sugere tanto que os mesmos sejam passíveis de interpretação quanto que
funcionem como chaves de interpretação da própria vida anímica, ou seja, da almaliteralmente
– “seelen (alma)”e “lebens (vida,existência).
Era esta a idéia: os sonhos podiam interpretar ou lançar luzes sobre os subterrâneos
da motivação humana. Esta obra é amplamente apontada como sendo a certidão de
nascimento de uma nova teoria e prática clínica que atravessou todo o século XX, ora mais
encastela da nas ortodoxias excludentes das Sociedades Psicanalíticas, ora banalizada nos
manuais da cultura de massa ou até despersonalizada pela Psicologia do Ego norte–
americana.Entretanto, foi assim que a genialidade da obra sobreviveu ao impiedoso
vaticínio, segundo o qual a teoria de Freud (1972) continha elementos relevantes e
originais; porém o que tinha de original não era relevante e o que era relevante não tinha
originalidade!
Quando nos deparamos com a afirmação de que o sonho cumpre uma função
psíquica, via de regra, nos surpreendemos. Afinal, para que serviria sonhar com, digamos,
um homem com cabeça de borracha; ou com uma cobra, além de aproveitar para fazer uma
fezinha no bicho? Pois bem, Freud (1972) afirma ser o sonho “... a via régia para o
inconsciente...”. Nós psicanalistas,gostamos de contar com isso. De fato, contamos; e isso
movimenta o pêndulo do afloramento das significações no contexto da relação com nossos
pacientes. E fora deste contexto mais específico, para que serviria esse monstro horrendo
que invadiu com sua horripilante e grotesca figura o mais íntimo do meu recolhimento-o
meu sono!?

{{1Cf. FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana, 1901.}}

Bem, para início de conversa, ”ele” não invadiu; foi, pelo contrário,convidado a, aí,
se instalar e cumprir toda uma alegórica tarefa. Ele aí estaria para representar algo que me
aflige,sem que o perceba com nitidez, mesmo em vigília. Não se trata de uma equivalência
de símbolos, mas de uma complexa linguagem cifrada dentro da qual, no exemplo da cobra
acima mencionado, eu poderia estar aflito com alguém ou alguma situação que me “cobra”
isso ou aquilo.Também não se trata de alguma alucinada sopa de letrinhas;ainda que
analistas ditos “lacanianos” sublinhemos que o inconsciente se estruture como (ao modo
de) uma linguagem.
Para não adicionarmos alguns complicadores de natureza teórica, recorro ao
discernimento poético de Borges (1976) o genial escritor argentino, quando comenta
Coleridge2: ”...as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que no sonho os
sentimentos inspiram as imagens (...). Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo;
se sentirmos medo no sonho, engendramos um tigre.” Ou seja, para entender ou digerir uma
aflição ou um medo que, evocado por uma determinada experiência de vigília (“resto
diurno” como a definiria Freud) sobrevenha em pleno sono,para continuarmos descansando
pelo sono “...podemos projetar o horror sobre uma figura qualquer, que durante a vigília
não é necessariamente horrorosa.” Eis aí a forma que encontrei para convencer pacientes a
superar o embaraço inicial do “estranhamento” causado pelos sonhos e passar a anotá-los.
Alucinatórios que sejam,sempre trarão à tona à consciência-a preciosa dinâmica
inconsciente subsumida pelos nossos mecanismos psicológicos de defesa. Se não os
anotamos,o Inconsciente os “apaga”. Supondo agora que se desmistificou algumas idéias
errôneas a respeito do assunto,resta-nos esclarecer aqui o próprio estranhamento
experimentado ao acordarmos após um sonho dito...”esquisito”.
Ocorre que, ao adormecermos,desligamos por assim dizer, a porção nobre do
cérebro (no Sistema Nervoso Central) responsável pela racionalidade dos nossos atos,
pela vontade (volição), pela consciência e pela tomada de decisões, entre outras
atribuições. Por outro lado, como numa troca de grandes usinas de força, ativamos o

{{2 Cf. Samuel Taylor Coleridge – poeta inglês – versão de 1797.}}

Sistema Nervoso Periférico que manterá em funcionamento os batimentos cardíacos por
exemplo e toda a musculatura lisa do corpo. Entramos então em sono profundo e, na
seqüência, no sono do sonho.3
É então que, do ponto de vista psicodinâmico “repassamos” acontecimentos,
sensações e percepções vivencia dos no período de vigília, sucedendo que, entre estas
imperceptíveis ocorrências, as que lançaram alguma questão psicologicamente significativa
ao nosso registro inconsciente, receberão um “tratamento” semelhante a uma narrativa
ficcional calcada numa figurabilidade especial. Costumo usar em consultório uma
observação citada também por Borges (1976) e atribuída a Joseph Addison (num ensaio de
1712) segundo a qual “...a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, há um tempo,
o teatro, os atores e a platéia”. Borges acrescenta que é “...também a autora da fábula que
está vendo...” Sobre a referida figurabilidade é necessário esclarecer que o “tratamento”
dado ao material psicologicamente significativo já aludido (e para que continue “latente” e
censurado pelo consciente) constitui-se de algumas operações de natureza lingüística
(metáforas, ou,analogias condensadas,e metonímias,tais como tomar “a parte pelo todo”,
“o objeto pela pessoa que o usa”, o “continente pelo conteúdo e outras)e, por vezes,
imagéticas.
Para ilustrar esse mecanismo, menciono um desenho a mim oferecido pelo meu
filho em que,a cabeça de um presumido homem asiático,aparece transpassada pela figura
de uma aeronave civil ,de ponta à ponta,seguida no plano seguinte por uma alusão
estilizada às torres gêmeas recém atingidas em Manhattan. No “balãozinho” a inscrição:
“Saiu da cabeça dele!”. Neste caso, uma metáfora inscrita num grafismo,..”como se” o
avião a que alude o desenho ter-se-ia materializado e condensado na abstração de uma
idéia...a de arremeça-lo!
Se estiver claro que, para defender-se de uma emoção negativa ou ameaçadora de
medo ou aflição, o nosso inconsciente transforma, edita ou deforma o material latente (e

{{3 é a chamada fase REM do sono; abreviatura em inglês para o fenômeno dos movimentos rápidos dos olhos,
que corresponde em média a dez ou vinte minutos de sonho.}}

precioso para a análise!) até que ele possa ser resgatado pela memória consciente e
experenciado pelo sonhante (pra diferir de “sonhador”) como algo estranho,então podemos
afirmar que através de um bem sucedido trabalho de distorção e disfarce, o sonhante não
teve seu sono interrompido e a narrativa do sonho deu certo; funcionou. Quando,aliás,não
funciona, temos os a terrorizantes pesadelos - os sonhos mal elaborados, os que nos fazem
despertar subitamente numa angústia horrível (proveniente de nossos censurados afetos).
Pensando assim, tecnicamente, pesadelos são sonhos que não deram certo. Mas...se nos
embrenharmos distraidamente ,e mais uma vez, nas reflexões de Borges (1976): “[...] e se
os pesadelos forem estritamente sobrenaturais? Digamos que fossem fendas do inferno.
Dentro dos pesadelos,não estaríamos literalmente no coração do inferno? Por que não?
Tudo me parece tão estranho que até isso seria possível.”

REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luís. Libro del sueños. Buenos Aires: Torres Agüero, 1976.
FREUD, Sigmund. Obras completas. Trad. Luis Lopez Ballesteros de Torres. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 1972. (Titulo original: Die Traumdeutung)


Marco Antonio de Araújo Bueno
Psicólogo clínico e psicanalista lacaniano, com especialidade em psicoterapia de família; Mestre pela
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); especialista-doutor em Psicologia
Educacional e doutorando em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, também na Unicamp;
trabalha com Hipnoterapia Regressiva em quadros clínicos de Depressão/Ansiedade (T.Pânico),
Dependência Química e Obesidade no Instituto do Sono Campinas;
cronista e colaborador de jornais e revistas
E-mail: araujobuenopsi@terra.com.br
Recebido em: 02/12/2005 – Aprovado em: 20/12/2005.

abril 17, 2006

"Desespelho"_Oficina, mote: "Elevador",de Valério Oliveira

03, 2006
Desespelho

Por Marco Bueno

Espelho, espelho meu,
Existe alguém no mundo?
Sim! O pressentido, que ousa.

Quando não refrata teu corpo
No corpo reconhecido;
No gozo que a especulava
Só para descapturá-la.

Seqüestrada pelo invisível do seu cio,
Há meses carente desse sinto-no-sinto,
Desse vejo, no vejo refletido
Na barbárie de desfragmentá-la.

Por puro desespelho, no fundo, ousa
Com dedos, restaurá-la plena em pelo
Em plena nudez da visibilidade.
Aquela que não aliena, quebra o espelho!

Espelho, espelho meu-
Que não exista alguém no mundo
Que não me seja apenas eu.


# posted by Sergio : 5:46 PM 1 comments

abril 14, 2006

Tese de Doutorado Unicamp_resumo ao CNPq

PROJETO DETALHADO
MARCO ANTÔNIO DE ARAÚJO BUENO
RA- 855353




“"O SONHO: DO SUJEITO ABSOLUTO AO SIGNO PRODIGIOSO -A ARQUITETURA DO DISFARCE”"



PALAVRAS- CHAVE:

1-ELABORAÇÃO ONÍRICA (SONHO);
2-SEMIÓTICA NARRATIVA (NARRATIVA);
3-PSICANÁLISE.


(FRAGMENTOS DO PROJETO DE DOUTORADO REFERENTES À PROBLEMÁTICA, OBJETIVO, METODOLOGIA E ESTRATÉGIA EXPERIMENTAL ADOTADOS)




(...)
Sem a menor intenção de apontar justificativas, cumpre-me dizer que a carga de complicações e obstáculos, acrescida às dificuldades de aproximação interdisciplinar e aos atributos peculiares das substâncias semióticas eleitas em todo o montante do processo de investigação a que me venho dedicando desde 1987, necessita ser devidamente ponderada, quando se trata, como neste caso, de operar recortes teóricos e eleger “corpus” para análise metodológica. Saliente-se, a propósito, algo de inerente ao próprio alvo do estudo a que me proponho: a partir – e isto é crucial que se reporte – de minha própria experiência clínica de consultório. Todo o móvel do presente trabalho deriva desta postura.
É, portanto, por levar em consideração essa fonte de indagações, esse “locus” peculiar, donde relanço um olhar sobre as vicissitudes da forma de se comportar que venho, há pelo menos uma década, observando em minha casuística clínica – da poltrona do analista ao divã do paciente – que o “recalcado” retorna e, reencontrando as mesmas perspectivas alçadas desde a conferência de Miriam Schnaiderman, cotejando os postulados de J. Lacan, C. Peirce, S. Freud, R. Jakobson, C. Lévi-Strauss e, agora, especialmente V. Propp (“Morfologia do Conto Maravilhoso), é que indago, objetivando, especificamente, uma problematização: – O que teria mudado no trabalho onírico e suas concomitantes narrativas nos pacientes a quem analiso no início deste século XXI, se contraposto ao objeto de mesma natureza – o Sonho – dos pacientes que Freud e seus discípulos analisavam no final do século XIX?”. (7, 8; 9; 10; 11 e 12, respectivamente).
De forma complementar e, agora justificando a relevância desta pesquisa, considere-se a premência de se proceder a uma espécie de síntese integradora de tantos elementos semioticamente diferenciados, em plena exacerbação da imagística, neste primeiro ano do terceiro milênio!
Há que se conjecturar também o quão oportuna se revela uma re-visitação ao panorama da abordagem contemporânea ao Sonho, no momento mesmo em que recém- comemoramos o centenário da ruptura epistemológica operada por Sigmund Freud, em 1900, com “Die Traumdeutung”!
É curioso que, em função da duplicidade e da abrangência de sentidos na língua alemã, o título dessa obra sugere tanto que os sonhos sejam passíveis de interpretação quanto que funcionem como chaves de interpretação da própria vida anímica. Então caberia ainda indagar: – O que estaria “interpretando” o sonho contemporâneo, no cerne da Cultura de massas e tributário de todos os fluxos de significação provenientes das novas mídias?
O que teria mudado naquilo que Freud chamou “Restos Diurnos”, no seio da nossa civilização de imagens?
Finalmente, mais dois grandes feixes de problematização nos impõem uma rigorosa atualização da sacralizada abordagem psicanalítica ao Sonho e sua Interpretação. O primeiro, e mais epistemologicamente controverso: – O que se analisa em consultório, quando se julga estar analisando sonhos? Seriam os sonhos-entidades, de tão límpida transparência empírica?! Ou formações discursivas peculiares? Ou narrativas sujeitas às mesmas transmutações históricas que pontuam o discurso literário propriamente dito?
Nesta linha de indagação, torna-se indispensável questionar, no caso, por exemplo, do “Delírio e Sonho na Gradiva de Jensen”, obsessivamente trabalhado por Freud: – Até que ponto se toca o Sonho propriamente dito, ou um seu simulacro, como sugere, de forma até contundente e desmistificadora, Sara Koffman, em “A infância da Arte” (13)?
Acima de tudo, o que se deve depreender da atual visada deste trabalho é muito especialmente o que ele propõe em termos de um deslocamento de perspectiva de análise e pesquisa: o objeto sonho é retirado do âmbito estritamente psicanalítico (que não nos interessará, senão como um datado momento histórico de contemplação do fenômeno onírico!) e reenviado, epistemologicamente, a um cotejamento bem mais abrangente, seja em profundidade (haveria a “essência” do Sonho e do sonhar?) seja em extensão (como se apresenta, em diferentes momentos da História e imerso em que determinantes que o contextualizem?).
O segundo problema refere-se à necessidade de uma atualização de categorias consagradas, como a metáfora e a metonímia. Essas mesmas que Freud, numa espécie de pré-figuração da Lingüística de F. Saussure (14) e se antecipando ao próprio Jakobson, tratando da contigüidade e da sincronicidade, batizou, respectivamente de condensação e deslocamento, operações mestras na desmontagem dos sonhos em sua época.
De fato, é instigante indagar: – Terão essas categorias mantido o mesmo “status” conceitual, perante a velocidade dos atuais processos de construção, circulação e impacto sígnico dos fluxos imagísticos de informação, no bojo de todo o avanço midiático da tecnologia contemporânea?
A respeito disso, quão proveitoso seria compor, com tal abrangência de perspectivas de investigação teórica, um levantamento atualizado e/ou retrospectivo de como se “narra” a Psicanálise nesse final de milênio! Narrativas puras? Narrativas pessoais...”romance psicológico”?
Propor-se, a este passo, uma releitura de nossas práticas, à luz de categorias barthesianas (“Análise Estrutural da Narrativa”, por exemplo), ou rever G. Genette (“Fronteiras da Narrativa”), ou mesmo D. Anzieu (“Par où commencer?” in ”Nouvelle Revue de Psychanalyse”, de 1990), bem como revisitar postulados de outros consagrados expoentes do estruturalismo, será uma decorrência natural da reforma desta minha empreitada. Mais um sonho?
Se assim for, que me valha o ensinamento do Talmude: ”Um sonho não compreendido é como uma carta não aberta”!


I) Disposições Metodológicas Gerais

Encontro, em uma monografia sobre a modernidade e a pós-modernidade, o destaque para uma frase de Ítalo Calvino, cujas implicações, desmembradas, poderiam nos levar ao eixo central da opção metodológica aqui adotada:

“Quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?” (14)

Experiências, informações, elementos tributários de contextos lingüísticos, sem dúvida, históricos. Historicamente verificáveis, também, as leituras e imaginações. No entanto, poder-se-ia indagar, do bojo dessa historicidade, a respeito da existência de diferentes experiências, a partir de uma predominância das leituras e das imaginações delas provenientes, ou das imagens propriamente ditas e de imaginações concomitantes, agora, de outra natureza. Eis aí o ponto onde se ancora uma espécie de bi-partição no corpus desta pesquisa: um corte temporal, presidido por uma categoria conceitual específica, a de Subjetividade, como se verá, tornará possível constituir duas extensões de experiências e informações, sobre cujas especificidades históricas, a questão da prevalência da substância literária e/ou da substância imagística poderá ser contemplada com o aparato teórico da Semiótica Narrativa e Discursiva. (15)
Trata-se de um recorte que se opera, de forma diacrônica, na “linha” da História do conhecimento humano, para, com isto, constituir ou eleger dois grupos de sujeitos-autores, em cinco grandes campos da experiência cognitiva e sensorial. Seriam eles: a Filosofia; a Política; a Literatura; as Artes Visuais (por contingência da lâmina: a pintura e o cinema); e a Música.
O critério que permitiu isolar tais áreas do conhecimento e práxis, como campos privilegiados da experiência do Homem, enquanto produtor da cultura (para Freud, obra; efeito do que chamou “Sublimação”), revela-se singelo, por natureza: é a inserção cultural do Sujeito que se pensa (a sua Subjetividade) ou “é pensado” (na acepção lacaniana do “sujeito/assujeitado”) (16), numa rede de relações em que habita (na acepção bachelardiana do verbo) (17), politicamente instaurado (na acepção bakthiniana da “palavra” como “arena da luta de classes”) (18), enquanto apercebe, reflete ou refrata o seu entorno sensorial e cognitivo, na dimensão estética da visão, do som e da abstração ficcional de seu devir, como animal da fala.
É obvio que o painel conceitual e ideológico imbricado nessa “singeleza” não tem nada de simples ou consensual. A complexidade e diversidade dos vetores teóricos que o compõem, no entanto, desvelam a própria transparência do universo das referências em que se apoia a pesquisa.
Há que se avisar, desde já, sobre o caráter abertamente fluido e transdisciplinar que marca os arroubos intuitivos iniciais deste Projeto. Por não se prender a cânones pré-configurados, no caminho de busca do seu objeto; por uma espécie de “imantação” da própria aura deste objeto; pela polissemia que o reveste; em suma, por um “aquém” metodológico – as amarras de natureza formal-abstratas desceram a um segundo plano, ao passo que a dimensão propriamente desejante que o inspira foi saltando controvérsias e discussões acadêmicas, para, mais adiante, lograr uma certa “re-significação” de suas eventuais imposturas. Risco calculado para um resultado incalculável?
Pois foi para reduzir o vazio de especulação, embutido em sua própria visada, que a opção metodológica justifica uma escolha, em terreno amplo, de um certo número de autores, consagrados em seus respectivos domínios, para, separando-os em dois grupos, que condensam períodos históricos determinados, distribui-los por cinco lâminas de atuação cultural, cognitiva ou expressiva e confrontar semioticamente a natureza de suas produções oníricas, obtidas em relatos que configurariam um corpus textual propriamente dito. Caucionou-se a escolha de tais sujeitos, na suposição de uma representatividade de suas experiências culturais, junto ao imaginário da coletividade, que teria lastreado suas obras, e estas, por sua vez, conferido fidedignidade aos mesmos relatos, numa espécie de circularidade de chancelas recíprocas.
Antes porém, algumas considerações sobre a própria idéia de “autoria” se fazem necessárias.
Primeiramente, no entanto, algumas considerações sobre a própria idéia de autoria serão necessárias. Tal como a conhecemos, a modernidade constitui uma experiência de dois séculos na cultura do Ocidente. Surge em meados do século XVII, com o “Cogito” cartesiano, o que levou, a propósito, a alçar R. Descartes como um dos autores aqui, na lâmina atinente ao campo filosófico) e E. Kant, com sua “Crítica da Razão Pura” (19). Adentra o século XVIII (o que levou a alçar R. Rousseau como um dos autores também, na lâmina do campo político) e vem a se consolidar no século XIX, quando, a partir da divisão social do trabalho (20) e a especialização na ciência e na arte, ocorre um processo de segmentação de atividades, anteriormente exercidas por um mesmo sujeito. Com o Iluminismo (21), define-se a constituição estatutária dos distintos campos em que se poderiam exercitar o pensamento e a ação humanos. Precisamente aí, afirma M. Foucault: (22)

“...a noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e nas ciências (p.33). Dessa forma, o nome do autor outorga um certo estatuto ao discurso, à obra, conferindo-lhe autenticidade (o discurso é real, verdadeiro), distinção (o discurso tem valor, é especial, importante) e permanência (o discurso conserva-se, fixa-se para a eternidade, assegurando [...] uma função classificativa: um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos.” (pp 44-45)

Ainda nesta linha, com ênfase, encontra-se um estudo sobre a “Autoria e cultura na pós-modernidade”: (23)

“...o autor [...] representa a realização do projeto da modernidade por meio da unicidade do sujeito e da sua obra, da sua unidade estilística, da sua coerência conceitual e até mesmo por sua originalidade. Esses aspectos servem para comprovar a autenticidade do discurso, e foram tão solidamente estabelecidos na cultura que ainda hoje são aplicados em grande medida tanto pela crítica literária como, sobretudo, pelas instâncias de avaliação científica. É possível identificar nesses aspectos os ideais da modernidade, como universalidade, harmonia, a idéia da existência de idéias únicas, a verdade e a razão.”

Assim dimensionada, a questão da autoria subjacente à escolha dos autores, neste trabalho, apenas estabelece, dentro do corte temporal, a pertinência de se recorrer aos sujeitos produtores de obras, enquanto tais. A questão central, não obstante, é a que contempla os sujeitos que, produtores de obras, se constituem aqui em sujeitos “produtores” de Sonhos. E, conforme se demonstrará, dado que o Sonho como tal se mostre inapreensível em sua essência (24), o que se terá obtido na recolha do material da pesquisa será da ordem da Narrativa. Onírica, de certo, o que implica recorrer a uma certa obra também de um certo autor, no âmbito científico da Psicanálise.
Dizer “científico”, apenas para contextualizar, significa a admissão de uma ruptura epistemológica nas chamadas Ciências do Homem, que funda um saber sistematizado, a partir da negação de seu próprio passado ideológico. (25) Assim, em “Die Traumdeutung”, certidão de nascimento da Psicanálise, Sigmund Freud constitui um saber sobre o mecanismo, a estrutura e a dinâmica do fenômeno a que chamou “Perlaboração”, ou o trabalho dos Sonhos. Em resumo, um conjunto de intervenções que denominou respectivamente Condensação e Deslocamento, destinadas a forjar o disfarce que, operando sobre o desejo (“Wunch”) inconsciente e, no intuito “econômico” de assim mantê-lo, transforma o Conteúdo Latente do Sonho (“latente Traumgedanken”) no Conteúdo Manifesto (“freie Einfälle”), ou seja, a “historinha” do Sonho, tal como a recordamos ao despertar. (26)
Pois bem, uma vez que se busca sustentar a idéia de que o Trabalho onírico, decomposto à luz da lingüística saussuriana, em mecanismos retóricos associados à Metáfora e à Metonímia (27), terá sofrido profundas modificações de natureza semiótica (28), a partir das inovações tecnológicas que marcam o início do século XX, e das chamadas “Novas Mídias”, no interior da Cultura de Massas (o discurso cinematográfico, televisivo, publicitário, etc), será exatamente na contraposição analítica dos dois grupos, aqui constituídos pelo corte cronológico já aludido, que se supõe que poderá emergir a verificação do postulado da pesquisa, através do exame qualitativo do material onírico coletado, via relatos ou narrativas de sonhos dos autores.
Fica claro que todo esse mosaico teórico necessita ser revisitado pontualmente em, pelo menos, dois níveis de tratamento propriamente conceitual:

A) Questões atinentes à narrativa, como substrato material do relato onírico;
B) Questões atinentes à história como ferramenta de análise.
Um terceiro nível de discussão estará atravessado em todo o percurso da pesquisa: a questão da Subjetividade, de como se constitui, se constrói de lâmina a lâmina. Num determinado momento desta trajetória, como se esfacela e se desconstrói e como isso pode ser depreendido do próprio corpus, sobre o qual se debruça a visada analítica proposta.
Retomando-a, por exemplo, e de forma propositadamente esquemática, na esteira do que se comentava a respeito da autoria e do corte cronológico, é instigante traçar um breve panorama, já há muito levantado, mas sempre oportuno; de Descartes a Sartre; deste a Freud e à releitura lacaniana do Inconsciente constituído como linguagem!
Perfila-se um conjunto de frases emblemáticas:

1. “Penso, logo existo”
2. “Existo, logo penso”
3. “Penso onde não existo”
4. “Existo onde não penso”

a corresponder, respectivamente:

a) Primado da razão no Cogito Cartesiano: – A essência precede a existência;
b) Inversão no Existencialismo: – A existência precede a essência;
c) Território do Sonho: – O ser pensante é constituído onde não possui existência positiva. No Sonho, sou conduzido, me vejo sendo visto;
d) Território do Inconsciente: – ”A primeira inscrição do sujeito é feita em relação a um sistema simbólico que preexiste a ele e que o condiciona desde antes de seu nascimento.” (J. Lacan)

Tem-se, portanto, a categoria da Subjetividade, como fio que permitirá percorrer todo um imbricado feixe de conceitos teóricos, no transcurso desta pesquisa. E, uma vez que se aponta para o Sonho como objeto de estudo, para a Narrativa como seu simulacro de expressão, e para o Contexto que uma certa temporalidade terá feito intervir na transformação da natureza de ambos, então três serão os campos conceituais a serem considerados, a saber:

1. Uma teoria sobre o Inconsciente, de natureza psicanalítica, para elucidar a mecânica, propriamente dita, da Elaboração Onírica;
2. Uma teoria sobre a Narrativa, de natureza semiótico/discursiva, para elucidar as propriedades específicas da estrutura, na qual será colhido o material onírico;
3. Uma teoria sobre a História, de natureza materialista, para elucidar a perspectiva de análise a ser adotada pela postura interpretativa da própria investigação.

Nota-se que a imbricação entre psicanálise, semiótica e história constituirá o pano de fundo conceitual deste trabalho. A propósito, foi precisamente em um estudo sobre Literatura e Psicanálise que Miriam Chnaiderman, observando não lhe ter parecido “casual” a referência permanente ao “trabalho poético”, no capítulo 3, “O Método da Interpretação dos Sonhos“, da obra “Die Traumdeutung“ de Freud, assume a seguinte convicção:

“Freud procede com o sonho como se estivesse diante de uma estrutura narrativa. A busca do sentido faz do sonho uma unidade com uma estrutura própria, cuja pesquisa se torna absolutamente necessária. Todo o capítulo ‘A Elaboração Onírica’, em ‘A Interpretação dos Sonhos’, busca a explicitação dessa estrutura onírica...” (29)

A História como Instrumental Analítico

Configuração do Material para Análise

Conforme está disposto no segundo parágrafo das “Disposições Metodológicas Gerais (Item III deste projeto), a descrição do corpus, pautada em um recorte diacrônico na ”linha” da história recente do conhecimento do homem, alude ao estabelecimento de dois grupos de sujeitos-autores, distribuídos em cinco lâminas, a cobrir cinco campos da experiência cognitiva e sensorial, domínios estes de que seriam representantes, seja pela importância de suas obras, seja pela pregnância de suas figuras emblemáticas no imaginário social contemporâneo.
O critério que rege tais escolhas ancora-se, primariamente, nas principais categorias teóricas que sustentam a argumentação conceitual deste trabalho, segundo o que já se discutiu: a questão do sujeito; a narrativa como simulacro da substância onírica do sujeito; e a história que subjaz ao contexto da produção do sujeito. Secundariamente, sustenta-se aqui a inevitabilidade da presença de elementos tidos como relativamente aleatórios, a sub-determinarem as referidas escolhas. Isto se dá em função da própria natureza da visada da pesquisa e peculiaridades eletivas de seu autor.
Do ponto de vista das técnicas objetivas de pesquisa, optou-se, em função da disponibilidade da literatura, pela busca de relatos de sonhos dos sujeitos, em suas respectivas autobiografias, memórias e demais suportes de semelhante natureza. Ficou delineada a seguinte configuração dos grupos e das lâminas:

L Â M I N A S
1. FILOSOFIA 2. POLÍTICA 3. LITERATURA 4. VISUALIDADE 5. MÚSICA
G
R I Descartes Rousseau Cervantes Goya Bach
U
P
O II J. P. Sartre F. Kafka Kubrik Lennon
S

Quanto ao recorte temporal, tem-se que, para o GRUPO I, se estabeleceu um período que vai do início do século XVII ao final do século XIX; e, para o GRUPO II, um período que cobre o século XX.
Além do caráter aleatório que, secundariamente, acompanha a escolha dos autores, é preciso salientar que tal demarcação se estabelece, em função de dois referenciais de base:

1) A proposição do conceito de Subjetividade;
2) O início da tecnologia subjacente à Imagística e às Novas Mídias.

As razões de se retomar o enquadramento propriamente metodológico neste item, ao invés de estabelecê-lo de início, nas próprias “Disposições Metodológicas Gerais”, podem ser consideradas como de natureza expositiva: melhor se dimensiona aqui, no presente item, todo o referencial de natureza histórica que inspirou o recorte temporal. A propósito, antes de se focar a questão da historicidade da Imagística, se indaga: o que, para além das operações específicas de recorte temporal, poderia autorizar uma aproximação epistemológica entre o sonho e a história?
Chama-se aqui a atenção para uma convergência fundamental entre os processos oníricos e a história, que encontrará seus fundamentos nas teorias de Walter Benjamin e residirá precisamente na predominância dos assim denominados Processos Primários.
Vejamos, para efeito de uma precisão terminológica, algumas definições importantes que Freud realiza, ao distinguir os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico. Elas estão presentes desde a “Entwurf einer Psychologia”, de 1895; mas será, no consagrado capítulo XVII da “Die Traumdeutung”, que virão a adquirir seu melhor desenvolvimento e, a partir daí, permanecer como referência imutável do pensamento freudiano.
Os termos “primário” e “secundário”, que, do ponto de vista da teoria Tópica freudia na, caracterizarão respectivamente o sistema inconsciente e o sistema pré-consciente-consciente, guardam uma oposição que é correlativa da oposição entre Princípio do Prazer e Princípio da Realidade. Correspondem, também, à oposição entre os dois modos de circulação de energia psíquica – a energia livre e a energia ligada. Do ponto de vista “econômico-dinâmico”, vejamos, com Laplanche e Pontalis:

“[...] no caso do processo primário, a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem barreiras de uma representação para outra, segundo os mecanismos de deslocamento e de condensação; tende a reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação primitiva).” (52)

Tais termos têm óbvias implicações temporais e mesmo genéticas. Para o que importa aqui, em termos da convergência a ser apontada, atentemos para esta passagem do filósofo S.P.Rouanet:

“[...] Para Freud, as correspondências e processos miméticos estão presentes em vários níveis. Eles se manifestam no sonho, em que as relações de semelhança são expressas mais exaustivamente que todas as outras relações lógicas, através da tendência à condensação que domina os processos primários. Esfera da energia móvel, os processos primários se caracterizam por deslocamentos contínuos de significações, o que faz com que dois ou mais elementos ligados entre si por uma propriedade comum possam amalgamar-se.” (53)

Observe-se, ainda sob a formulação de Rouanet sobre Benjamin, como o Processo Primário se daria no campo da história, traduzida em termos de seus mecanismos comuns aos do sonho, para Freud:

“[...] O mundo histórico, para Benjamin, parece estar submetido à lógica dos processos primários, o que facilita o transporte de significações de uma esfera para outra (da infra-estrutura para a superestrutura, e de um elemento da superestrutura para outro), ou seja, por processos reais de metaforização, em que consistem, justamente, as correspondências.” (53)

Neste primeiro comentário do item III.3 (com sua ligeira retomada de aspectos metodológicos), se o próprio parentesco entre sonho e história pode ficar insinuado, o recurso às autobiografias, como técnica de coleta de dados, merece uma reflexão bastante matizada de J. M. Gagnebin, em função de seu valor teórico nos escritos de Benjamin.
O ponto de partida dessa reflexão é um complexo jogo de transformações entre dois textos de Benjamin: “Berliner Chronik” (de 1932; inacabado) e “Berliner Kindheit um Neunzehnhundert” (“Infância em Berlim”, de 1933). A partir da proposta de uma revista – um ensaio autobiográfico sobre sua cidade natal –, o filósofo opera todo um redimensionamento do conceito de autobiografia, que passa pela questão já mencionada da ampliação do sujeito (diferente do “eu”); da morte; do destino do sujeito narrativo (realização da ação política, pelo retraimento do ego perante as exigências da luta social e do próprio estatuto da lembrança, definida como “(...) a capacidade de infinitas interpolações naquilo que foi” (54). Sobre essa recusa do estilo clássico de autobiografia e sobre como se dá a transformação do primeiro texto na “sobriedade” do segundo, J. M. Gagnebin comenta:

“[...] Benjamin desiste pouco a pouco da forma autobiográfica clássica que segue o escoamento do tempo vivido pelo autor, [...] para concentrar-se na construção de uma série finita de imagens exemplares, mônadas (para usarmos um dos seus conceitos preferidos), que retêm a extensão do tempo na intensidade de uma vibração, de um relâmpago, do Kairós. Estas miniaturas de sentido são finitas, pois o seu acabamento estético é a condição da sua significação. São igualmente finitas porque o ”eu” que nelas se diz não fala somente para lembrar de si, mas também porque deve ceder lugar a algo outro que não a si mesmo.” (55)

É precisamente nessa renúncia à autoridade do autor e no abandono deliberado das encenações armadas pelo “eu”, que Benjamin, segundo Gagnebin, “(...) reaparece como uma voz narrativa única, surgindo do ‘entrelaçamento‘ da sua história com a ‘história dos outros’ e, poderíamos talvez acrescentar, do Outro”.
Pois bem, esse “algo outro que não si mesmo”, esse “Soi-même comme um autre” (como colocaria Paul Ricoeur) e essa inconteste presença do Outro (na acepção lacaniana), a reger uma autobiografia que se “quedaria escrita”, no mesmo sentido de que o sujeito não fala, senão que “é falado” por uma ordem que o precede e o ressignifica – eis o que se estará buscando aqui, no que tange ao suporte cultural estatuído para a coleta dos relatos oníricos.
Mais que isto, se ponderarmos etimologicamente sobre a ordem do “estético” (retomando a idéia de Olgária Matos de que o acabamento estético seria a condição de significação das mônadas de Benjamin), ou duma “razão estética”, no sentido de Sensação, Sensibilidade e Sensualidade, poder-se-ia afirmar com a filósofa: “(...) É preciso reconciliá-los, o que só se tornará possível com uma nova apreensão do tempo e da fruição que não seja a do dia industrial, tampouco a do tempo histórico do progresso.” (66).
Autobiografias articuladas por um sujeito ou atravessadas por um conceito de subjetividade referida ao “A“ (‘Autre’, em maiúscula), proposto por J. Lacan como discurso; ordem de elementos significantes... mais uma vez; enfim, sistema de convenções significantes que compõe a mítica do inconsciente e que marca o autor, prefigurando sua localização desde o nascimento, quando é inscrito numa ordem simbólica que o antecede, poder-se-ia afirmar – biográfica e anátomo-fisiologicamente, por se constituir de um sistema, tanto parental quanto simbólico, que determina sua posição enquanto sujeito/assujeitado.
É oportuno lembrar que toda a reflexão em torno dessa referência, para a demarcação temporal aqui proposta, terá suas raízes na própria literatura. Acompanhe-se como ela se funda e procede da noção de “unidade narrativa”, ressaltada por A. Mac Intyre, no início da década de 80 do século XX, colocado aqui como ”cenário” da produção do Grupo II. Segundo Ricoeur:

“[...] Mesmo na vida corrente, quando contamos a nossa história, seja a nós mesmos seja aos outros, nosso relato desenrola-se entre um início e um fim que não nos pertencem, pois a história da nossa concepção, do nosso nascimento e da nossa morte, depende de ações e de narrações de outros que não nós mesmos; não há, portanto, nem começo nem fim absolutos possíveis nesta narração que nós fazemos de nós mesmos. Ademais, o discurso que temos a respeito de nosso passado é inseparável da dialética entre antecipação e retrospecção que guia os nossos projetos de existência e a sua retomada rememorativa.” (57)

Por fim, tomando-se a segunda referência temporal, estabelecida para a composição do Grupo II (uma vez que a do Grupo I se constitui pela própria categoria da noção de sujeito, no século XVII, inaugurada com o Cogito cartesiano), importa salientar sua relação com o advento das assim chamadas Novas Mídias, a partir da “revolução” instaurada com o desenvolvimento da tecnologia contemporânea.
A propósito, poder-se-ia, do ponto de vista estritamente diacrônico, tão pouco privilegiado no enfoque deste trabalho, apontar para a Primeira Guerra, como evento inaugural de uma espécie de sujeição do homem “às forças impessoais e todo-poderosas da técnica, que só fez crescer e transformar cada vez mais nossas vidas, de maneira tão total e tão rápida que não conseguimos assimilar essas mudanças, pela palavra.” (58). Eis, então, a problemática do desaparecimento dos “rastros” que, partindo do que Benjamin chama de “queda” da experiência e da narração, apontaria, tanto para uma certa impossibilidade desta última, quanto para a exigência de uma nova história. De fato, comenta Gagnebin:

“Numa carta a Adorno [Theodor Adorno-filósofo, também da Escola de Frankfurt], de 4 de Junho de 1936, Benjamin traça um paralelo entre o ensaio sobre a reprodutibilidade, consagrado às mudanças da percepção visual e tátil das artes plásticas, e o ensaio sobre ‘O Narrador’, que ele está acabando de escrever. Ambos tratam, com efeito, do ‘declínio da aura’, declínio sensível não só nas novas técnicas do cinema e da fotografia, mas também no fim da arte narrativa tradicional, de maneira mais ampla, na nossa crescente incapacidade de contar.” (59)

A presente pesquisa também se ocupa da busca de rastros. Ao tentar circunscrevê-los nas narrativas de sonhos dos autores, nada mais realiza que um esforço de pensar os seus respectivos “restos diurnos”, metamorfoseando-se, em termos da natureza técnica dos disfarces, de uma forma de experiência de temporalidade (Grupo I) a outra (Grupo II), enquanto operam as devidas transmutações de significação dos conteúdos latentes, seus textos, historiograficamente cravados, supõe-se, por algum tipo de anseio estético.
Que se possa arriscar, a partir disso, uma metáfora benjaminiana (e sua redentora estética, messiânica), à guisa de paradigma metodológico: Benjamin comovia-se (etimologicamente, até) com o desespero do homem de seu tempo, que, “despossuído do sentido de sua vida”, tentava cravar as marcas de sua possessão nos objetos pessoais; desde suas próprias iniciais no lenço da algibeira até – e Benjamin o destaca com certo humor – no uso do veludo, que, nada por acaso, teria sido um dos materiais preferidos de sua época.
Que nos seja viável, no âmbito da visada aqui proposta, não a atitude metodológica truculenta de descortinar os elaborados conteúdos manifestos como peças anatômicas; tal forma de “resgate” corresponderia a despossuir o sonho de sua transgressora “camada de poeira”, para reconstruí-lo à luz da mais inapta ilusão do sujeito. Que se viabilize, isto sim, mediados pelo auxílio de uma peculiar concepção de história, contemplar esse veludo do inconsciente, para nos comovermos com o contentamento de suas alegorias e as transformações pelas quais terão passado.
No contexto de uma leitura sobre o Superego, Benjamin trabalha uma interessante metáfora – a do “passante”. Sua agudeza de raciocínio traz à tona categorias consagradas em Freud e as redimensiona além da psicologia individual. Quando escreve sobre o narcisismo (trata-se do “narcisismo secundário” da teoria freudiana), aponta para um movimento de retirada do interesse do mundo, “desinvestindo-o”; para algo que impediria o “passante” de sair de si mesmo, não deixando seus traços no mundo. Pois bem, e quando o mundo não deixa traços no passante? Aí, então, é que a tese do filósofo passa a buscar seus fundamentos nas categorias de uma psicologia coletiva: o passante teria sido, dessa forma, privado de qualquer capacidade de registrar a história! E, precisamente deste ângulo é que o sonho, observadas suas transgressoras faculdades de desarticular a história, bem como, de ensejar, assim, sua própria rearticulação, tornar-se-ia, então, uma espécie de instrumento redentor, a serviço da crítica da cultura. Eis, portanto, o diferencial em relação a Freud: a consciência coletiva também sonha, valendo-se de elementos arcaicos e contemporâneos. Estes últimos são os “restos diurnos”, que tanto interessam à abordagem desta pesquisa. E, por desvelarem o desejo como realizado, apontariam para o futuro, gerando a utopia. Nas palavras de Benjamin:

“[...] A utilização dos elementos do sonho [‘Traumbild’, ou imagem de sonho], ao despertar, constitui a aplicação exemplar do pensamento dialético. É por isso que o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época sonha não somente a seguinte, mas ao sonhá-la a força a despertar.” (60)

Atente-se, no entanto, para a possibilidade de se deparar com dois tipos de equívoco. O primeiro seria enredar as idéias de “coletivo” e mais algumas formulações antidiacrônicas, nas teorias junguianas.Todo um complexo debate com Adorno, outro eminente filósofo da escola de Frankfurt, desmerece, em definitivo, qualquer viabilidade na direção de C. G. Jung. O segundo: o sujeito do sonho não será a “época”, tampouco. Buscar-se-á, no transcurso desta investigação dos relatos oníricos, estabelecer as condições de visibilidade epistemológica que sustentem a idéia, segundo a qual, os autores estudados, enquanto sujeitos historicamente inscritos em suas conjunturas de socialização e estruturas simbólicas que as precedam, ter-se-ão apropriado de suas inserções culturais e, ao transcodificá-las em atividade psíquica, as teriam restituído à própria ordem simbólica, sob a forma de suas produções sublimadas. Para Freud – objetivações do desejo. Para Benjamin – os “Traumbilder”. Assim, da mesma forma como não se reconhece fronteira entre o sonho individual e o coletivo, não haveria fronteira entre o homem e o mundo.
Gênese e sentido guardariam idêntica proporção entre imaginário e...(continua)


ATUALIZAÇÂO DA SITUAÇÂO ACADÊMICA DESTE PROJETO
Caro Marco Antônio, demorei um pouquinho para responder visando arrumar um jeito de ser-lhe útil. Não consegui e sei que será muito difícil, nesse momento em que uma pilha de artigos já atrasados não me deixam aceitar novas tarefas, por mais interessantes que sejam, como a sua proposta. Sinto. Grande abraço, Jorge


Jorge Forbes

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----- Original Message -----
From: Marco Antônio de Araújo Bueno
To: jorgeforbes@uol.com.br
Sent: Friday, August 10, 2007 7:58 AM
Subject: Conjecturas & perspectivas



Estimado Jorge, fiquei em palpos de aranha com meu doutorado. Entraves metodológicos: não foi possível coletar relatos oníricos de Cervantes (a serem cotejados com os de Kafka, deste sim...colhi 50 relatos), de Goya e S Kubrick (nada de ambos, para que pudesse examinar, comparativamente, concomitantes elaboarações oníricas, estabelecido um corte temporal, cujo divisor seria o advento das novas mídias e respectivas imagísticas, dentro daquela perspectiva benjaminiana) e de R. Descarte (só o sonho do 'Cógito' !) com Sartre, via fontes primárias. Engavetei o projeto e, tendo em vista uma possibilidade de extender o prazo para a qualificação, desejo trabalhar as micronarrativas literárias, à luz de categorias lacanianas como "La parole pleine" e, muito especialmente - o Tempo Lógico.
Estou anexando 9 microcontos (segundo 3 parâmetros; o menor tem 40 caracteres com espaço e a maioria tem 10 palavras) para ver se, em lhe causando alguma palpitação, possa lhe suscitar algum palpite, do tipo: "Isso dá samba!", ou "Não misture conhaque de alcatrão com catraca de canhão"; ou.."vá fundo,cara"!. Neste caso, peço-lhe algumas sugestões, bem específicas, de busca em Lacan, além das já consagradas.
O fundamental em narrativas muito breves (começa lá em Novalis) é que haja narratividade. Do contrário, é aforismo, máxima, frase, etc. Pressupõem voz narrativa, algum recorte no tempo/espaço, e uma ação (pressuposta, às vezes) que arrebate o leitor em "nocaute", e não "por pontos" como em novelas e romances.
Segue também minha biografia literária e um conto não tão breve. É que este documento
era para o site Cronópios, para o qual passo a escrever. Sei que este apelo parece o tal telefonema das três da madrugada. Portanto, esteja à vontade para declinar. É que, com tão pouco prazo e tamanha pressão para não deixar um segundo doutorado...inconcluso, ocorreu-me, naturalmente, buscar o auxílio de alguém que conciliasse inventividade com lastro canônico; então: Jorge Forbes.
Um grande abraço


{Acima,algo dos trâmites psicanalíticos/literários da nova proposta em meu doutorado(Unicamp), que tomam os microcontos como base de experimentação. Tudo, como se vê, ainda muito embrionário}
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7:52 PM