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novembro 17, 2009

"Um Trato Retrô"- Conto;ficção literária

“Um trato retrô”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Nas semanas depois do acidente tudo estava confuso, sobretudo a identidade dela, sua auto-imagem. Cirurgias seguidas, rotinas alteradas e intoxicação medicamentosa – dessa geléia plasmada na pressa, na dor e na urgência, precisava extrair uma nova matriz identitária, urgente, na pressa; com dor e tudo. Tempo lhe sobrara, um tempo flácido de esperar o tempo passar entre as pontualidades dos remédios, das consultas. E foi nessa oficina do capeta que surgiu a idéia de juntar suas fotos três por quatro e organizá-las numa tomada de vista única. O efeito foi arrebatador. Tudo lá, simultâneo e chancelado pelo olhar oficial de fotógrafos profissionais lidando com o que chamavam de “o cu da profissão”. Ei-la, em fotogramas manchados por marcas de carimbo, distribuída pelo tempo linear; comovente – retratos, só.
Só? Uma constelação de achados sobre si mesma. Ela, uma pedra Roseta a lhe propor uma espécie de arqueologia do próprio rosto; a convocá-la à descoberta de recorrências e revelações tão sutis sob a lupa da maturidade. Sim, o retrato oficial é um tipo de seqüestro da imagem, constatou. O negativo entregava, pelo afã do bem-parecer, os desastres todos que, foto a foto, repetiam-se na captura de um rosto angustiado aqui, outro tão amargo mais adiante, tão falso-relaxado por vezes. Tão pouco e muito – ela, sempre. Sempre o desafio de contornar a precariedade do registro com algum artifício improvisado. Sorriria? Posaria solene conforme o destino institucional do retrato – um RG, uma CNH, uma matrícula. E sempre só mais tarde a idéia de que aqueles retratos que a precederiam em inscrições e situações protocolares, numa surpresa perpétua ou quase, fariam a reedição de sua pertença por um rosto que já pouco lhe pertencia.
Mas a visada agora era diferente. Tratava-se de lançar mão do que fosse a potência de alguns traços, de reeditá-los mentalmente e construir um compósito de rosto certo, autêntico e quase heróico por ter sobrepujado a aflição dos momentos alinhavados, com vistas a moldar um rosto leal a si mesma, abstraída a linha do tempo.
Com tantas restrições de movimento, de ações mínimas do rosto, vinha notando um empobrecimento da gestuária e da expressão facial. Reduzido a deslocamentos estereotipados, o rosto que emergia do colar cervical levou-a a perceber-se como uma tartaruga ou com uma pomba de anel no pescoço. Os olhos, olhos apassivados, acomodando-se à passividade, oscilavam entre a máscara da dor e a contemplação resignada dos momentos de trégua. Assim, somado à construção do compósito redentor, ocorreu-lhe eleger uma dentre as fotos para identificar-se com ela, imitar-lhe o semblante e recriar alguma vivacidade, alguma expansão a partir do que jazia capturado ali, eivado de vida. Parecer-se consigo, imitar as ações correspondentes, injetar-se vida. Mas vida lastreada, avalizada por uma biografia retrospectiva. Ideal e fiel ao que fora, um dia, a máscara que melhor podia representá-la para o olhar do mundo administrado que lhe exigira os retratos desidratados de vida. Vida seca? Ora, vida...
Estava há horas no editor de fotos, olhos secos, pernas dormentes e completamente magnetizada. É este! E no exato momento em que proferiu a escolha percebeu-se impregnada pelo repertório completo subjacente ao retrato. Agora chega, Vilma – a voz firme e benevolente do marido – Faça algum alongamento, você está impregnada de remédios opíóides, do campo eletromagnético do computador, de inércia! Vilma, chamada pelo nome, sem apelidos, diminutivos, girou a cabeça na direção da voz e, plena de seu repertório resgatado, ergueu a cabeleira com as duas mãos, lançou-a para trás, sorriu mordendo o cantinho da boca e, sedutora como aos dezessete, elevou os olhos para o teto em busca de um vazio prontinho para ser colonizado por uma fala nova. Original porque a origem era ela; original pela ruptura com as falagens mornas com que vinha recobrindo sua convalescença:
-Impregnada, ual! Opióides, é? Já acabei aqui, vou passar um protetor e tomar um sol; fodam-se os edemas. E mais, uma cervejinha ou duas não vão me matar.
Na tela, a vestibulanda audaciosa, cheia de verdades indizíveis e congelada no tempo, emanava vibrações e hormônios tempestuosos e...vida, direto para essa nova Vilma, já publicitária interrompida , libido em concordata e um calvário por rotina aos trinta e oito, incompletos. Na tela, a Vilma poderia secar, diria um Oscar Wilde. Um trato; belo trato dionisíaco em plena vigência do tratamento apolíneo. Vida chama vida, ora. E ecos de leituras juvenis ocupavam seus devidos espaços na parte de dentro da cabeça, em cujo rosto pálido, os olhos agora cintilavam.

novembro 01, 2009

"Eu?"-Conto (Fantasia) selecionado para P.FUNDAÇÃO

Eu?

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Me? Se me virem fazendo barulho é que deu briga. Tenho pouco tempo pra estar nas coisas que não prezo muito. Só queria meu lápis vermelho, por fora, que por dentro tem meu traço da infância. Pencil, pensei – o veneno dele vinha do grafite e eu deixei perder tudo numa aulinha, num lanchinho do curso de inglês. Vim buscar o meu costume de sempre, só. E topo com esse turbilhão na idéia. Não entendo a filosofia dessas pessoas, querendo sempre o mesmo feijão, de tempero igual. O jeito de fazer o tempero muda sempre, mas não comem o jeito, mandam o mesmo requentado goela adentro para ficarem parecidos com eles mesmos. Quase derrapo nesse erro. O lápis trazia meu traço de infância. Procurei até ficar nervoso e vir aqui, e, aqui, entendo que outro lápis pode dar em outro jeito de infância, que esta não muda nunca. Um distanciamento, uma maturidade sobre as mesmas paisagens; fiz meu trabalho, ficou bom sim, mas quero meu vermelhinho, meu talismã. Estou desprendido dele agora e ele ficará à vista, num pote grande, de grandes pincéis inúteis. E como a infância não desgruda de mim, essa barulheira toda é para marcar uma mudança de tela, para jogar umas cores nessas caras de azulejo.Precisava mesmo metralhar pigmentos, questions-tags se quiserem, contra essa idéia de comer requentado, de temer temperos desconfortáveis, têmperas de um deslizar incômodo. Por exemplo, essas ilustrações que eu compro nas apostilas e que ficam agredindo meu senso de alguma coisa verdadeira, de cara limpa... Pois chega dessa merda, eu não aprendo com essa merda e a cara de vocês me causa pena de mim mesmo. Se respeito quando ficam ridículos atrás de um chupa-cabras, de um blutufe encharcado de material que nem é seu, ilustrado por um idiota de avental, então por que dar risada de quem procura seu lápis sossegado? Filhos da puta, robozinhos de merda, don’t you? Quero a porra do meu vermelhinho porque inventava coisas com ele, ora. E os caras me zombando: - “Is the pencil red? Are you shure?” – o caralho é red, o lápis é cinza 0,7, ignorantes. E vai voar apostila e notebook nessa espelunca se meu lápis não aparecer!
Se quero um copo d’água, quero sim, mas pra jogar na tua cara e ver borrar esse olho de peixe morto, tia. Tia... ridículo eu aqui, cumprindo as vontades de uma menina bobona, eu repetente, sempre. Repeti o terceiro ano três vezes, três vezes três, nove e noves fora, zero. Zero de recurso, zero de Geografia, zero na carteira pra conta da luz. Já estudou matemática com vela? Dependendo da posição dela, dependendo do vento, uma equação vira um animalzinho esperto, os olhinhos vivos, procurando umas figuras, mais amiguinhos. Eu só ficava aceso assim, imaginando, temperando minha tristeza de ser deslocado, com as figuras que já estavam inventadas, mas uma luminária vermelha como a do Robson não mostrava. “Vira ela assim, torce pra lá, olha agora... Deu pra ver?”. Não, não estava vendo nada e a mãe dele achando que aquela luz era sacanagem sexual, idéia minha – só podia dar nisso, estudar com moleque mais velho, dispersivo: -“Repete de ano e fica bulindo com meu filho, retardado!”. Hoje penso no tanto de sombra naquela cabeça de mãe novinha, que parava em casa e trazia lanchinho, os peitinhos loiros aparecendo na camiseta moderna.
Essa espelunca tem cheiro de lanchinho, de achocolatado. Se a Geografia ficou me atrasando a vida, as equações viraram personagens, lagartos com língua bifurcada, dinossauros. E o Inglês da tia não é pra mim, é pra cumprir minha palavra na editora. Acho que a “tia” se enjoou desse cheiro e fica no passo do que ela adivinha por baixo desta bermuda estampada, um caralho bem red, gostoso como a rebolada pra escrever morango em inglês, de pé, na lousa. Quer que desenhe, tia? E todo mundo rindo com ela vermelha, raiva de mim, tesão de mim. Ora, tia, uma fruta tão simples, nunca viu madura assim? E se encostando levinho na perna dela, só pra sentir a macieza duma tela em branco, e ela, a dureza duma vida de verdade, com cheiro de Tietê, de Marginal atravessada a pé pela Ponte do Limão, pra chegar naquele prédio com símbolo verde com meu lápis vermelho só, e pureza de grafite por dentro. Cumpria passar vergonha de escrever “s/ número” no endereço e a palavra saía com duas línguas sibilando como lagarto. E “profissão” saía com cedilha, encolhida de constrangimento. Falta o Inglês... Será mesmo que falta? E se der um bico nesta porra e fizer barulho entre as pranchas, esparramando tecnologias pelas baias dos colegas: - “Eu faço isso aqui de olho fechado e faço melhor que todos vocês. Ok? Então não vai ter Inglês pra inglês ver, certo?”, e voltava aqui só pra comer a “tia” sibilosa... Desprendido do meu lapão vermelho-red, sujo de tanta imaginação, eu lá do outro lado da Marginal vendo a minha infância chorando de desamparo. Foda-se a infância, vou chorar alto; vou chamar pro pau! You liked these, don’t you, belo rabo?