MOTEL DOS VIANDANTES
Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Ilustração por: Grisele Morantt
A veneziana creme
denota algum crepúsculo lá fora, ao fundo do quarto. Recostado em um travesseiro
largo contemplo minhas pernas soerguidas pelas tiras de metal nas polias, ao
alto. Não tenho a menor ideia de onde estou nem o porquê daquela posição ridícula;
esforços em vão... lembranças opacas, cabeça oca. Ela entra.
- Como se
sente, amor? Devo ligar a TV, é hora do seu jornal. Ligo agora?
- Que porra
de lugar é esse? Estou formigando, dor na nuca. Onde você estava?
- Fui
providenciar sua Dolantina; você exigiu aos berros, não se lembra?
- Não me
lembro de nada. Como cheguei aqui?
- Querido,
não se faça de bobo, você está no pós-cirúrgico, foram três dias de UTI! Você
já até conversou com o neuro, falou da batida ...da escuridão... lembra?
-Eu não me
lembro de nada, só fragmentos, sensações... dor.
- Eu vou
ligar o jornal.
(“... que
estacionou no meio fio e foi multado/ O professor de Antropologia Armando Ferraz
Cutello, 64 anos, resgatado de um barranco no km 37 da BR-101 está na Santa Casa
depois de uma cirurgia de seis horas e seu estado de saúde é estável. O corpo
mutilado da jovem encontrada a poucos metros foi removido para o Necrotério Municipal...”)
Observo o
embrulho pontiagudo que ela encostou na mesinha ao lado da cama. A expressão dela
é serena, quase mística. Apalpa a minha aliança com a mão esquerda e, com a
direita baixa o volume com o controle. – Sua dieta é liquida até segunda ordem,
a dor vai melhorar certamente; a Dolantina vem vindo, diz sorridente.
Confusão mental,
tento mexer os dedos; vácuo total, dor lancinante. Então a seringa e a sensação
imediata de conforto, placidez... quase euforia.
Alguns estilhaços
de memória, um bem-estar de nirvana, mais lembranças: a luz baça do outdoor-MOTEL
DOS VIANDANTES. Retrovisor... a placa familiar de um carro familiar. No encalço?
Sirene recalcitrante e um ruído da “Voz do Brasil: (...) Cai o Ministro da Saúde...
Apagão.
- Quer abrir
seu presente? (o tom amaciado, de uma felicidade contida, de um suspense difuso).
Oferece-me o embrulho pontiagudo. “Por quê precisaria de um guarda-chuva neste
lugar, Helena?”; tento alguma descontração que testemunho nos músculos e tendões.
Não obstante – ei-la, a bengala. E o prenúncio pontiagudo.
A face angelical
de uma bordadeira grega, as rugas dos cinquenta e seis, um brilho sinistro no
jeito de me olhar: - As notícias não são boas mas não são desanimadoras; veja
se gosta do desenho dela. Será, agora, a sua companheira inseparável, como
eu...
Examinam-me a
perna esquerda enquanto, inundado por um relaxamento excitado, examino a
bengala. Com um arrepio que me percorre da cervical à últimas terminações nervosas
que ainda pressinto noto o relevo incrustado na porção inicial da curvatura do
objeto. Não há dúvida – é uma vértebra. Uma vértebra sacrococcígea; tão
estranhamente... familiar...
A última sacrococcígea que apalpei, eufórico e
relaxado como nessa viajem de Dolantina tinha um frescor jovial dos vinte e
seis anos...
- Professor
Armando, como se sente hoje? Cumprimente sua própria esposa pela cirurgia. A
colaboração dela foi crucial!
Na TV do
finalzinho do jornal: “(...) o cadeirante foi atropelado quando estava a
caminho da Igreja...”