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agosto 05, 2019

MOTEL DOS VIANDANTES


                                                 MOTEL DOS VIANDANTES

                                                 Por Marco Antônio de Araújo Bueno
                                                 Ilustração por: Grisele Morantt




A veneziana creme denota algum crepúsculo lá fora, ao fundo do quarto. Recostado em um travesseiro largo contemplo minhas pernas soerguidas pelas tiras de metal nas polias, ao alto. Não tenho a menor ideia de onde estou nem o porquê daquela posição ridícula; esforços em vão... lembranças opacas, cabeça oca. Ela entra.
- Como se sente, amor? Devo ligar a TV, é hora do seu jornal. Ligo agora?
- Que porra de lugar é esse? Estou formigando, dor na nuca. Onde você estava?
- Fui providenciar sua Dolantina; você exigiu aos berros, não se lembra?
- Não me lembro de nada. Como cheguei aqui?
- Querido, não se faça de bobo, você está no pós-cirúrgico, foram três dias de UTI! Você já até conversou com o neuro, falou da batida ...da escuridão... lembra?
-Eu não me lembro de nada, só fragmentos, sensações... dor.
- Eu vou ligar o jornal.
(“... que estacionou no meio fio e foi multado/ O professor de Antropologia Armando Ferraz Cutello, 64 anos, resgatado de um barranco no km 37 da BR-101 está na Santa Casa depois de uma cirurgia de seis horas e seu estado de saúde é estável. O corpo mutilado da jovem encontrada a poucos metros foi removido para o Necrotério Municipal...”)
Observo o embrulho pontiagudo que ela encostou na mesinha ao lado da cama. A expressão dela é serena, quase mística. Apalpa a minha aliança com a mão esquerda e, com a direita baixa o volume com o controle. – Sua dieta é liquida até segunda ordem, a dor vai melhorar certamente; a Dolantina vem vindo, diz sorridente.
Confusão mental, tento mexer os dedos; vácuo total, dor lancinante. Então a seringa e a sensação imediata de conforto, placidez... quase euforia.
Alguns estilhaços de memória, um bem-estar de nirvana, mais lembranças: a luz baça do outdoor-MOTEL DOS VIANDANTES. Retrovisor... a placa familiar de um carro familiar. No encalço? Sirene recalcitrante e um ruído da “Voz do Brasil: (...) Cai o Ministro da Saúde... Apagão.
- Quer abrir seu presente? (o tom amaciado, de uma felicidade contida, de um suspense difuso). Oferece-me o embrulho pontiagudo. “Por quê precisaria de um guarda-chuva neste lugar, Helena?”; tento alguma descontração que testemunho nos músculos e tendões. Não obstante – ei-la, a bengala. E o prenúncio pontiagudo.
A face angelical de uma bordadeira grega, as rugas dos cinquenta e seis, um brilho sinistro no jeito de me olhar: - As notícias não são boas mas não são desanimadoras; veja se gosta do desenho dela. Será, agora, a sua companheira inseparável, como eu...
Examinam-me a perna esquerda enquanto, inundado por um relaxamento excitado, examino a bengala. Com um arrepio que me percorre da cervical à últimas terminações nervosas que ainda pressinto noto o relevo incrustado na porção inicial da curvatura do objeto. Não há dúvida – é uma vértebra. Uma vértebra sacrococcígea; tão estranhamente... familiar...
 A última sacrococcígea que apalpei, eufórico e relaxado como nessa viajem de Dolantina tinha um frescor jovial dos vinte e seis anos...
- Professor Armando, como se sente hoje? Cumprimente sua própria esposa pela cirurgia. A colaboração dela foi crucial!
Na TV do finalzinho do jornal: “(...) o cadeirante foi atropelado quando estava a caminho da Igreja...”