“Esse Tempo Insondável...”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Despedaçada, invadida pelas entranhas; vísceras expostas como caqui despencado ribanceira abaixo. Quase que jazia sobre superfície lajeada, viscosa, eivada de fibras viscosas vermelhas e globulências esbranquiçadas. Ao redor daquele mosaico destroçado, instrumentos pontiagudos de incisão e sondagem perfurantes e ferramentas percussivas em estado de repouso gritante, transpiravam ainda ofegantes. Imersos naquela pulsação sinistra dos atos irreversíveis. A marcha wagneriana de fundo enroscou e emitia guinchos agudos de estourar os ouvidos. Um celular reclamando em sons de urgência.
Bêbado, com seu avental branco entreaberto, a genitália exposta à fresta da persiana que prometia mais calor pelo nublado metálico, ele estava confuso e exausto apoiando-se de costas numa geladeira escancarada ainda, o pulso esquerdo latejando de tanto cortar e mexer e perfurar, distendia-se ao longo do corpo exangue enquanto o direito alcançava o aparelho numa torpeza que se dissolvia – dever cumprido – pelos ladrilhos ensebados, escorregadios. Hora de prestar contas e planejar as ações seguintes, meticulosamente, contra o tempo e as expectativas tão desfavoráveis ao feito, atendeu: Alô! “Tânia, demorou! Operação melindrosa, deu trabalho sim, ufa! Ta feito!”
Cambaleou, tomou mais uma talagada e começou a jogar água naquele cenário que o manteve em tensão ótima até então. Ao passar o rodo lembrou-se que a área externa estava imunda e escorregadia também, mas o sol já ofuscava a vista pela porta de vidro toda embaçada. Pegou o celular, tonto, meio em êxtase. Nem precisava ir pro México, regozijou-se. Tamanha perícia, planejamento e muita fé no seu taco. Riu-se e lembrou-se do perito...Mas concentrou-se em limpar os vestígios todos daquela lambança. Depois arranjaria o resto, telefonaria...Teria esquecido algum detalhe?Franziu a testa, e aquela...:
“Tânia, minha tesuda, quase ia esquecendo, aquela sua bermudinha verde-musgo, bota ela que o almoço vai ser na mesa da piscina. Vou ligar pro meu amigo, aquele perito do churrasco do hospital. Virá com a namorada, ela faz a salada. Não disse que dava um ranguinho tropical hoje? Quer saber, antes de tudo vou me dar um choque térmico! É, um mergulhão de avental e tudo, pra cortar esta narcolepsia, essa aura de lagosta e caldeirada que me descalderou todo”, e gargalhou em disparada em direção à porta da área, sem ouvir o mas o caseiro não vinha pra limpar de manhãzinha?
Vinha.Veio, esvaziou a piscina e limpou toda a sujeira de folhagem do temporal da noite. Foi-se em silêncio. Ficou a foice: uma mancha vernelho-esbranquiçada de um metro e noventa, a três metros da porta de vidro esfumaçada; dois metros e meio da superfície escorregadia. Quase um simulacro do prato exposto sobre a bancada da cozinha, naquele instante em que Tânia entrou, sentou-se em posição de lótus e ficou meditando se fratura de crânio com morte cerebral não podia virar, com o tempo, alguma forma alentadora de...narcolepsia, depois de tudo. Qualquer virada; com tempo. Não irreversível!
novembro 07, 2008
"Esse Tempo Insondável..." Conto breve (não Sci Fi)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
8 comentários:
Marco,
Interessante o seu conto. Uma qualidade sua solta aos olhos: aquilo que os teóricos chamam de imagética. Outra coisa.
As frases são bem coesas, concatenadas, sem uso de recursos manjados como: "enquanto isso, seja como for, foi então que, eis senão quando", etc. Parabéns pelo texto. Também o parabenizo pela conquista da publicação na revista organizada pelo Nelson Oliveira. Será um ótimo presente recebê-la.
Wilso Gorj
{Gorj é escritor, microcontista de mão cheia. Publicou "Sem Contos Longos", comanda o site "O Muro" e o jornal " O Lince".}
Muito interessante, apenas tive algumas dificuldades por causa de expressões/palavras, que são tipicamente brasileiras e a que não estou acostumada. Vai-me safando a época em que via novelas brasileiras e aprendi alguns maneirismos.
Tenho um blogue onde coloco (não está lá tudo) os vários textos e crónicas apenas para leitura como se fosse um portfolio.
Parágrafos Inacabados
http//:paragrafosinacabados.blogspot.com
Se quiseres ver o meu blogue principal, com imagens e texto:
A Páginas Tantas
http//:apaginatantas.blogspot.com
Abraço,
Raquel
(Portugal)
Olha, acho que foi o melhor texto teu que eu li. Impecável! Sem o menor exagero.
Estou curioso mesmo em ler a revista, já faz um tempo.
Rodrigo Novaes
{Rodrigo é escritor. Vem fazendo a coluna-blog "Superfície Líquida" no Cronópios}
Show o conto, gostei muito.
Luiz Fernando A.Bueno
{Meu irmão Luiz é professor da FGV, palestrante sobre Sustentabilidade e temas correlatos.Trabalha com comércio exterior em escritório no Brasil.O comentário dele tem, exatamente, metade da extensão dos meus microcontos monofrásicos de dez palavras. Um homem de desafios!}
Muito bom. Havia lida há três dias e, logo, percebido que um texto como esse, de tamanha qualidade, merecia ser lido novamente. E acabei de ler novamente. Gostei muito. Não houve, de maneira alguma, excesso de adjetivos. Muito pelo contrário, foram precisos e indispensáveis e desenharam (quase que literalmente), no conto inteiro, é claro, mas especialmente no primeiro parágrafo e na retomada de cenário a partir da frase "ficou a foice: uma mancha...", o ambiente em que os personagens estiveram. Isso possibilita ao leitor a exata sensação de suspense desejada pelo autor, além, é claro, da constatação do talento literário deste. Parabéns.
Olá Marco Antonio
Com certo atraso (muito, na verdade), te mando meu endereço para receber seu honroso exemplar.
Li o conto e adorei. Fiquei tensa e mergulhada, de forma desconfortável, na atmosfera terrível do conto. Estou curiosa para os próximos!
Grande abraço
Judith Rosenbaum
Votado! Da próxima vez, não comunicarei que votei, blz? Voto e pronto.[Refere-se às exigências do Portal Literal, onde o conto entro na FILA DE VOTAÇÃO]
Já tinha lido esse seu texto. Gostei porque fica uma dúvida no texto todo se o cara tá no hospital (IML) ou na cozinha. Depois é revelado, mas prende a atenção por isso.
Um abraço,
Rodolfo M. Dourado Gomes (do "TURMA3, Yahoogrupos; chefe do cerimonial diplomático e relações exteriores do glorioso tetrês)
Marco
Ressurreição tua, hein? É de arrepiar esse teu conto. Parabéns.
Cecilia Prada
Postar um comentário