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março 06, 2007

"A Fila"_ Conto breve(500 palavras)INÉDITO_Para coluna "CO

“A Fila”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Não lhe causou estranhamento algum quando, já na entrada daquele pátio, topou de cara com a tabuleta bem postada, solene, onde se lia: “A FILA”. Em caixa alta, sem serifas, preto sobre o branco e bem à altura da vista. A lucidez com que se impunha excluía e conclamava a presença de uma crase, isso sim, seria de se estranhar? Ao contrário, era quase uma condição, uma essência mesmo da placa, essa simultaneidade. A caminho, no entanto, lembrou-se ter lido “FUNERÁRIA” onde seria mais crível que, pelo recorte urbano do local, pela vizinhança típica, lá estivesse escrito “FUNILARIA”. Mas este petisco caprichoso, já o reservara ao analista, até por uma questão de comodidade, ou de resistência. Não era o caso desta placa. O máximo que ela permitia era conjecturar se teria faltado um ponto de exclamação ou, algo mais sutil – se, por decoro de se evitar um imperativo grosseiro, autoritário, suprimiram elegantemente um “RESPEITE A FILA!”. E era essa condição que impunha respeito.
Tudo isso lhe infundia uma espécie de esperança vaga, de crença em valores substantivos, de confiança pela confiança; acelerou a marcha e perfilou-se aos demais. Não eram muitos, os demais. Silhuetas discretas, deslocamento proporcional aos espaços sucessivamente desocupados pelo atendimento. Pessoas, como ele, ali, na fila. Dispunha de um dispositivo contra o enfado, conversa mole, mas, sobretudo, contra a timidez incorrigível. Era um livrinho em formato seis por cinco que cabia em qualquer canto de bolso, paginação confortável e à prova de olhares bisbilhoteiros. “Padre Antônio Vieira”, uma antologia...viria a calhar; apalpou e, pela espessura percebeu o engano; era um Hamlet cuja impressão, de tão nítida, dava para ler até nos vagões do metrô e, até por isso, ele o reservara para o crepúsculo.
Decepcionado, enfiou as mãos pelo bolso e resignou-se a sua corporeidade perfilada aos demais. Foi então que se instalou um certo caos no recato daquela espera ordenada. Um homem deixou a fila e, ajeitando pasta e capacete pelos braços aproximou-se, agachou-se e ergueu do chão um retângulo de plástico cinza.- “Esta senha é sua, não?” Sim, era dele, escapou do bolso onde guardava o William Shakespeare das horas crepusculares. – “Melhor ficar esperto pra quando a fila bifurcar”, asseverou, num tom de voz sinistro, em baixo profundo e olhando furtivamente para os lados e para cima, em direção ao começo da fila. – “Obrigado, mas que bifurcação é essa?” Olhou para o edifício à frente, era térreo, não havia razão para olhar para cima.
O caos se instalou por uma razão singela e contra cuja obviedade, a menor inobservância parecia implicar em afronta grave. Tinha alguma relação com as senhas e aceitar que a cor da senha determinasse a bifurcação parecia tão consensual aos demais, que apenas uma leve indagação sobre sua razão de ser, soava como um libelo. E tornava o perfilado um contraventor.
- “A minha, senhor, eu sei que é branca. Quando bifurcar lá na frente eu sei pra onde devo me dirigir. E a sua que eu vi que é cinza vai tomar outro destino. Fica mais atento que ninguém aqui é ingênuo nem palhaço!”.
- “Bom, já que” branco “não é cor, deve ter senha preta também...”.
- “Tem sim senhor, mas ninguém viu cair de bolso nenhum!”.
- “Deve ser porque não tem destino nenhum!”

7 comentários:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

O meu amigo, tua pergunta muito me elogia, mas de Kafka só sei o jargão da imersão no mundo louco e tirano da burocracia e dar e mal estar que isso provoca. Se for isso não vejo não. Há sim um jogo alegre (não cômico) com o deslocamento dos sentidos a semiose a interpretação, sem cair na armadilha de chapar no herói a tarja de egocêntrico, embora brinque com essa possibilidade e coloque isso como uma armadilha para o leitor, mas se ele cai melhor ainda pois logo, logo não é nada disso. Mas se te veio Kafka à mente, não custa pensar porque veio este nome e não outro. Você sabe responder melhor do que eu
Aquilles Delari
5:07 PM

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Olá, Marco!

Li seu texto, obrigado por ter postado. Que tensão é a fila, hein? A ordem (independente do progresso) estabelece limites, mas as pessoas estão cada vez mais no limite da convivência. Se vc não entendeu nada do que eu disse, é porque eu não entendi nada do que foi escrito. Recebi a ficha preta.

Ah, parabéns pelo poema em 900 segundos.

Abraços,

Rodolfo.

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Marco,
Escreva para cid.pimentel@terra.com.br que chega.
No cid.bertozzo@itelefonica.com.br, também.
Mandei seu conto para todos os meus oficineiros e mais alguns. Depois comento no privado.
Abração
Cid

5:13 PM

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

A desatenção à fila é corriqueira. Gostei da maneira hilária aqui apresentada.
Abraços

Enviado por Hanid em 28/05/2007 16:27

para o texto: "A Lista" (T498937)

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

por: =NuNuNO== 19/04/2007 22:04hs
Ol�...

Seja bem vindo a contos e vinhos :-)

=NuNuNO==
( Que perdeu a senha e n�o lebra de que cor era... )

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

An�lise, nosso cotidiano. Cada qual de um lado da rede. Nunca passei do "qualifying" mas rebato bem os saques.
Perp�tuamente "na fila", convido-o a ler DE PRINCESAS E DE SONHOS. Abra�o

Enviado por Ocirema Solrac em 28/06/2007 10:18
para o texto: "A Fila" (T498937)

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

, vou direto ao conto “A Fila”. Adorei a imagem da placa “sem serifas”, a informação seca, direta, não refinada, de uma “fila”. A divina e absurda bifurcação dá um sabor especial e laça o leitor para uma identificação plena com a personagem. A leitura de Padre Vieira ou Hamlet dá o acorde clássico, uma tentativa de grandeza humana na mais mesquinha das situações. E a cor da senha, as diferenças supremas pelo nada, a coisa nenhuma determinando destinos, é soberba.

Carlos - São Paulo-SP (Publicitário)
08/Out/07