PROSÓDIAS

FACEBOOK

FESTINA LENTE PELO MUNDO

Map

BO ! (aramaico)

dezembro 06, 2007

"Processador Central" - Conto breve-Ficção científica(inédito)

“Processador Central”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Fui chamada às pressas ao pequeno apartamento de Liza. Era madrugada alta, tempo chuvoso. Mas, faminta apenas, ocupava-me em juntar condimentos leves à mistura das refeições do dia e escutava Ginastera, a “Variação canônica para oboé e fagote”; relíquia recuperada pelo meu ócio resignado desses últimos anos. Os 2:31 minutos que levava à repetição ad nauseum, repetição em volume reduzido nem tanto - enlevando-me e velando o misterioso sono de minha vizinhança zumbi. Quando em vez, fumava pelas frestas de um basculante; a fumaça conspiratória denunciada pela lúgubre luminância da rua fantasma. Pois bem, Liza, tivera um daqueles pesadelos reais.
Registrou o sonho, Liza? Não. Mas contou-me o suficiente às minhas anotações e, tendo antes ligado para mãe e, esta, insistido na idéia de recorrer a mim para acompanhar Liza ao centro, parecia mais determinada a agir que propriamente angustiada.
Interrompi o processamento dos meus resíduos culinários, insisti para que ela recolhesse do ralo do esquecimento, do aquém-linguagem, os resíduos de seu pesadelo e, com uma gravidade emputecida na voz, tentei dissuadi-la a se embrenhar pelo centro, como zumbi, na ilusão de mitigar suas intimidades angustiadas naquela maquinaria suspeita do “CPP” – nome obscuro para uma autarquia que se pretendia como um organismo público de processamento de pesadelos. Um contra senso instituído, em face da alta incidência de distúrbios do sono – pesadelos, aferida pelo Ministério do Trabalho e Lazer, desde o início de 2036.
Liza, sejamos razoáveis, passar por sessões relâmpago de dramatização do óbvio – que são ou teus fantasmas mesmo, ora! Filas, senhas e mais filas de pessoas apavoradas que não trocam palavra com medo de perder a vaga, depois...a Máquina! Mas mamãe conhece o sobrinho do homem da estatal que sabe de um psiquiatra gnomotivista-experimental (...). No cinzento daquela manhã, incapaz ou sem alma suficiente para dissuadir Liza de farfalhar sua singularidade pelos receptores daquela incubadora caleidoscópica., de espargir seus fragmentos oníricos pelos corredores de uma repartição pública cartorial, setorizada...kafkiana, minha recusa foi lapidar. Preciso passar pela “Retro-sensibilização”, retorquiu minha amiga, convicta de que já estivera impregnada por pesadelos classe “D” por mais de duas vezes naquele quadrimestre; risco de demissão na certa! Classe “D”, ruminei? É! “D”, de derrelição?! Ela recordou-se do texto de Hilda Hilst, mas não adiantou. Pairava sob síndrome de abstinência de substância específica: sentido.
Entrei pela manhã relendo fragmentos de alguns clássicos. Entre eles –Gilles Deleuze sobre coisas como a “máquina desejante”. Nas ruas, Liza, atarantada, na pressa, agonizava atropelada. Seu fantasma, para redimir minha recusa, lembrou-me um verso de “Iracema”, um clássico também, de Adoniran Barbosa: (...) "travessou contramão"! E eu? Ah,“eu sempre dizia”, deveras. Era a minha questão central. Paga ainda “meus alfinetes”, hoje.

5 comentários:

Veri. disse...

Oi olá!
Bem, estou passando para dar uma olhada no seu blog e agradecer pelo seu comentário no 50 letras. Esse blog também está sendo um dos meus favoritos! Eu li os seus post e queria falar que eles são realmente muito bons! Mesmo! Me interessei pelo seu jeito de escrever. Gostei dos seu M.C! São realmente muito bons! Então é um elogio que dou convicta. Bem, eu tenho outro blog, caso se interesse; www.rosasdosul.blogspot.com
esse blog eu divido com outras duas meninas que postam no 50 letras, a Lá e a Isa. Bem, obrigado de novo pelo seu elogio.
em 11 letras: bem bom, mesmo.

Veri.

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Oi, Marco

A princípio a gente tava mais a fim de publicar romances. Mas acho que pode ser uma coletânea de textso curtos, desde que a temática seja sci-fi e fantasia. A idéia inicial do selo é essa. Aliás, quem entende mais de ficção cientifica mesmo é o Nelson. Eu to gostando muito de Cronicas Marcianas do Bradbury, mas não tenho tanto repertório do gênero. Apesar de que o mais bacana mesmo, pra gente, é reunir gente que consiga escrever algo não convencional, que dialogue com a literatura contemporânea mesmo - como é seu caso.
Sobre o filtro do Nelson, não sei dizer. Ele tá agora no Rio, mas você pode tentar pelo cacopsi e ver o que acontece.

Abraço,
Ivan


{O "selo" a que se refere o escritor Ivan Hegenberg é a empeitada editorial dele e de Nelson Oliveira- ficcionista e ensaísta,meu oficineiro em 2006}

Anônimo disse...

Oi Marco.. Fiz uma tentativa frustrada de ser adicionada no seu orkut, porque adoro sua produção literária, e como escrevo também, poderíamos, quem sabe, trocar experiências.. mas eu entendo sua posição! rs De qualquer forma, não poderia deixar de dizer o quanto lhe admiro!
Bjos
Elaine

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Olá, Marco Antônio

Desculpe a demora da resposta. Obrigado pelo comentário gentil. Sim,Nadine Stair somos nós. Desejo o melhor para você em 2008. Seu conto não é daqueles que se decifram à primeira leitura. Melhor assim, pois propicia múltiplas leituras. Mas lá está a atmosfera noturna, com verberações de luzes intermitentes, e um círculo de angústia. Parabéns.

Abraço do Eustáquio

{A referência a Nadine pode ser entendida na crônica "O Falso Poema de Borges"- revista "Metrópole"/18-Nov-2007-do Jornalista e escritor( "A Febre Amorosa", "Ensaios Mínimos", e outros)Eustáquio Gomes}

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

salve, salve, marcão! li somente agora o seu conto sobre o futuro, em que teremos uma máquina de processamento de pesadelos, eu achei a idéia genial, cara, mas achei que faltou vc explorar mais a idéia, o sentido dessa máquina no conto (para a menina principalmente), fiquei estarrecido com a idéia de se classificar pesadelos por categorias e isso poder desempregar alguém, vc poderia ter ido mais afundo nisso também, por que na minha cabeça uma categorização dos pesadelos acarretaria um outro pesadelo (no "real") o de ser despedido. uma categoria "E", poderia mandar alguém pro hospício? pra cadeia? pra Lobotomia? pra presidência? um outro problema, pelo menos pra mim, faltou uma construção mais forte do cenário futurista, assim como da personagem - que parece estar emputecida, mas a narrativa ainda assim dá a impressão de que ela parece ser indiferente, parece, talvez vc precise criar um clima mais forte e intenso, vc tem um baita fluxo narrativo, o que eu mais gostava em vc na oficina, mas eu acho que o que te fode é essa intertextualidade, essas referencias, seja clariciana, kafkiana, hildahistiana, os tantos "anas" possíveis, acredito que isso tira muito da sua narrativa ao invés de agregar; claro isso é minha interpretação repleta de meus preconceitos ( e são muitos) literários, gostaria de ler uma resposta sua até mesmo pra eu tentar uma outra releitura do seu texto, mas uma coisa eu digo também prefiro muito mais seus contos longos dos seus contos curtos. aquele abraço.

Fernando Cruz (do site da Oficina TURMA3)