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novembro 24, 2006

"Navalha na Tarde"_Conto curto (publicação:coluna "Cotidiano", que assino na revista 'Showroom"_DEZ/06

“Navalha na Tarde”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça...e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
O próprio Domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
A barba e o Domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
O Domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível. – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval. – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não mexe. Barbear é preciso...
- Viver não é preciso!

5 comentários:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Marco,

Está curto.
Eu curto.
Você curte.
Curtirão?

Minha única impressão é que pode ser tentada, se quiser, uma versão mais longa.

Não por atenção à personagem, nem por (des) respeito ou consideração ao leitor.

Por exercício e por ofício.

Mas pode ser assim, caso você não prefira o esticar.

Abraços

Cid Pimentel

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Caro Marco

Parabéns. V. está se enveredando muito bem pela agradável senda do conto.
Idéia boa, exposição clara, estilo inconfundível - a um tempo jocoso e mordaz - como convem a êsse difícil segmento da arte literária. Agradável de se ler.
Grato pela lembrança com abraços do
Rodolpho

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Marco,

Gostar ou não gostar é uma questão que não se coloca sobre a leitura de seu texto, de vez que você escreve bem e gostoso.
Para além daí, vem a "análise" da escrita.
Demorei até agora , pois não tinha certeza do que dizer sobre não ter gostado de uma expressão"realizar o nada". Não gostei. Não sei dizer de fato porque. O fato é que não gostei da frase. Senti-a fora, senti-a muito dentro, senti-a colocada, senti-a deslocada.
Vai ver que o efeito esperado/pretendido foi este.
Não gostei.
Acho o texto e disto tenho segurança, uma forma pronta e acabada de conto, com todos os componentes clássicos . Tempo, ação, côr, tessitura, provocam a agradável emoção de uma leitura completa.
A frase me ficou com um travo.
E pode ser um problema meu.
Ofereço-o como uma reflexão e com a estima que tenho pela sua Literatura.

ABRAÇO,

CID PIMENTEL

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Parabéns pela concisão, pela precisão, pelo estilo elegante...
Um abraço, béti

Enviado por béti mecking em 10/06/2007 09:38

para o texto: "Navalha na Tarde" (T509225)

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

"Coçar inconclusões" nos "vitrais do tédio"... Texto bom de se ler até de ponta cabeça!

Paola Benevides

[Do www.e-chaleira.blogspot.com]