“Deslocalidade”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Todos nós aqui, que escolhemos ficar por aqui, conhecemos este litoral por “localidade”; um consenso, uma forma simbólica de garantirmos certa sobrevida junto ao inóspito. Meio abstrato enquanto referência territorial, seus contornos são dados pela imaginação, mais que pelas balizas naturais ou pelo próprio pedaço de oceano ali em volta. Alguns dizem “ah, aquela localidade...”, e isso apenas contribui para adensar a aura cartográfica daquele recorte, ardilosamente próximo dos perigos do mar. Falaram também no risco radioativo, no geológico, mas temem mesmo, garanto, é a fantasmagoria sobre aleijões que aparecem de repente, aqui ou ali, sobreviventes genéticos, assustadores de incautos. Sobre estes seres, necessário for, contarei depois.
Não sou um nativo e, mesmo assim, quase todas as lideranças, acanhadas ou hostis, respeitam minha presença e meu jeito de viver. Estou sempre distraído, perambulando e cantarolando num tom quase inaudível, porém ritmado e resoluto. Meu semblante não interroga, não interfere. E sabem que não ando a esmo. Sabem que tenho meu lugar na localidade, apesar de ser um nômade e um sobrevivente, como eles todos. Cultivei também uma aura em torno do meu deslocamento incessante. E a temem, assim como temem qualquer inseto, qualquer planta que exale determinação de viver. Se minha andança ritmada tem um propósito, não é maior que o de permanecer vivendo. Meu tarefário não se sobrepõe ao de qualquer outro ser, aberrante ou não.Não me compadeço nem me enojo. Principalmente, não me entrego ao tédio. Isto os assusta.
Pois bem, matei um ser. Ou uma experiência abortada e tornada monstro que saltou sobre mim nas escarpas onde busco provisões, pois, do oceano, só espero catástrofes. Matar um coiso por aqui, lancetar um pós-humano de linhagem não seriada, equivale a retirar um espinho cravado entre as costelas. O seguir adiante alivia a dor, o tédio; nunca pesa, como se dizia um dia – moralmente. Desta vez, nas escarpas, foi diferente, algo de substância moral anda assombrando-me, tortuoso como o desenho labiríntico das encostas. Caminho mais pesado desde então, contorno algumas aldeias e, não raro, me pego confuso, despistando minhas próprias pegadas. Do mais prazer que obtinha quando, acolhido nalgum desvão, contava sobre refluxo das marés e, solicitado a decifrar códigos entre virilhas de fêmeas jovens, ejaculava como menino, hoje - medo.
Aquela localidade codificara um padrão tácito de moral e, nele, apoiava-se um padrão de convivência, obscuro, porém regular. Observava tais padrões, e até os animais peçonhentos, até os coisos, ao modo deles, respeitavam meu deslocamento nômade, noticioso de presságios do oceano, alentador pelo cantarolar truncado e tão pulsante. Acima de tudo, respeitavam-me pelos meus registros – o álibi das minhas interações. Eu lhes infundia alguma pureza pelo rigor dos relatos, pela magia da sonoridade que hes espantava o tédio. Pisava com firmeza por causa desse respeito; hoje, por causa do espectro que matei pelo caminho, ando esquadrinhando o espaço com tentáculos lentos e o meu rigor narrativo tem migrando para cuidados obsessivos, quase hipocondríacos. Meus dispositivos de registro, a cada pouco, mais reticentes, lacunares.
setembro 16, 2009
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5 comentários:
Marco,
Estava com saudade de ler uma crônica sua, especialmente. Há tempos não lia uma. Ela é antiga? - acho que me lembro do título dela, bem como, mais ou menos, do que diz.
Fica boa a reflexão sobre popular x erudito, e o uso do humor, principalmente quando instigando a confusão entre "lullismo" e "lulismo". Onde será publicada a crônica?
Quanto ao conto, me pareceu menos difícil de entender do que outros.
Além disso, reparo que, dessa vez, não há diálogos, o que talvez reforce a "deslocalidade" do personagem, que não é um nativo do local, etc.
Abraço
Um belo texto, parabéns.
Li e gostei. Gostei porque me intrigou. Intrigou-me pelo narrador estar tão próximo ao leitor, nunca tão próximo em tudo que já li de sua autoria; pela forma direta e seca de mostrar o conflito: “Pois bem, matei um ser”; pela frase final, não pela elipse, mas pelo sentido que ela produziu em mim, enquanto leitora: parece que o narrador quer continuar a falar, mas não encontra mais forças. "
Vivian (GO)
... Hoje, volto com um comentário que talvez sirva de parâmetro de como uma pessoa de “ fora” do círculo vê o seu trabalho. Bom! Muito bom! Penso que este seja o melhor , pelo menos segundo a
minha interpretação.
O texto, menos hermético que os anteriores, apresenta-se como um leque de significações complexas. Entre elas, tomarei uma das interpretações : a que achei mais adequada, ou melhor, a que eu mais gostei.
Através de uma narrativa em primeira pessoa , expõe as situações , os deslocamentos de lugar e da mente do personagem-narrador, e a aquisição do medo , proporcionando um estado de alerta .
( Por favor, quando falo em deslocamentos, esqueça de que é um psicanalista, ok? ) rsrsrs
( O PLANETA )Vejo como uma narrativa cujo objetivo consiste num aviso à sociedade do nosso século: faz-se necessário visualizar o futuro negro ( Aldous Huxley) do planeta e de seus humanos. (= deslocalidade )
( O HOMEM ) Vejo como uma narrativa moral , revelando os aleijões morais (sem sentimento, sem espiritualidade ) que a sociedade materialista e tecnológica cria.
Para mim, o conto é uma viagem de descoberta do interior humano .
OBS: Se não aceitar essa interpretação, leia o meu pensamento fluindo nos blocos abaixo. Pode ser que muitos leitores, menos avisados, vão ter a mesma visão.
BLOCO I : ANTI-ESPAÇO -Apresentação de um cenário de clima macabro, hostil, fantasmagórico... motivador de MEDO . Este sentimento é revelado na carga semântica das palavras como inóspito, risco radioativo, aleijões, perigos do mar, etc. Entretanto, a região não se apresenta com existência real , mas como fruto do onírico, do imaginário, como ambiência psicológica ( um alerta para a humanidade: fotografia de nosso planeta no futuro se não cuidarmos dele agora. Desculpe a digressão. ) Portanto, deslocamento no sentido de transferência de seu estado mental para a paisagem. Ou o contrário? Espelhismo?
BLOCO II : APRESENTAÇÃO PSICOLÓGICA DO NARRADOR-PERSONAGEM .
O narrador-personagem apesar de não ser nativo do local, é respeitado, determinado, mas introspectivo, frio, impassível. Até mesmo seu andar é próprio de um dominador
Há deslocamento incessante não só físico, pois há transferência do seu mundo interior, para seu comportamento) , e isso assusta os moradores, causando-lhes MEDO
BLOCO III : REVELAÇÃO – DESCOBERTA DO INTERIOR HUMANO
“ Matei um ser” é uma revelação assustadora, mesmo tentando amenizar com a justificativa de que é um “ coiso” , resultado de uma experiência que não saiu perfeita.
(mecanismo de defesa). A morte do ser deveria dar-lhe a sensação de alívio, sem culpa ou remorso, já que ele é um aleijão moral . Entretanto, sente-se em conflito, em desequilíbrio ( labirinto, tortuoso ). Mais um caso de deslocamento ( transfere para o seu interior o desejo de sobrevivência do “coiso”, se ele queria sobreviver, o “ coiso” também queria) Com isso o aleijão moral adquire sentimento, a espiritualidade intrínseca a todo ser humano. Descobre-se ser um humano e sente MEDO
BLOCO IV : CONSCIÊNCIA DA TRANSGRESSÃO
Sabia-se respeitado, mas , agora, perde a paz de espírito, devido à transgressão às regras da comunidade . O deslocamento surge quando transfere seu problema interior para a escrita , consequentemente o MEDO fá-lo sentir-se travado, tolhido, sem espontaneidade. Personagem-narrador metalingüístico. Seria ele um escritor? Ou O escritor ....
ABRAÇOS E SUCESSO !
PS: Em “ A Hora da Estrela”, Clarice Lispector coloca um personagem escritor , Rodrigo S.M., como personagem . Através dele, Clarice quer repartir com o leitor os segredos do ato da criação literária . Entre eles, revela a arbitrariedade da literatura: a impossibilidade que o escritor sente em controlar os desdobramentos da história que inventa, principalmente quando constrói personagens muito fortes, psicologicamente complexas. Assim também, o leitor entende a obra segundo sua visão de mundo.
{Prof.Mariluci Lopes}
Deslocalidade – Marco Antonio de Araújo Bueno
Já tinha lido esse conto antes, creio que no blog do autor. Muito bom. Cenário distópico perturbador. Narrativa muito bem conduzida. O Marco é um artesão da palavra, só fico puto quanto ele resolve liberar seu lado lisérgico e extrapola na punhetação.
[Tibor Moriks, do blogue dele]
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