Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Deixando o restaurante bandejão, lá vinha a Roxana equilibrando mochilinha nas costas, tonelada de xerox na mão esquerda e um saco plástico contendo uma baguete de pão murcho e uma laranja não descascada. Eu acompanhava a cena de um ponto do campus onde, aos trancos, sacolejando, desembestando pela turba, ela trombaria comigo, surpresa, mas agradecida: - “Ah, o cara, meu anjo da guarda, o carinha que deixou a Psico pra entrar pra História!”. Assim me enquadraram quando, alguns anos de formado, consultório claudicante, entrei para o curso de História querendo esquentar um projetinho de mestrado que me levaria a muitos, muitos pontos do campus. A gente conversava papos-cabeça enquanto eu lia seu tronco e membros. Ela achava meu olhar “algo penetrante...” essas conversas sobre Eros e Tânatos, e eu sentia alguma ternura melancólica pela sua libido-algo dispersa- ali distribuída entre os textos pesados para os dezenove da menina e o pão murcho, que pegava por pegar, do jeitinho mesmo como pegava meu membro e enlaçava meu tronco. E nada, nada sabíamos sobre a laranja e o que já significava àquela altura. Tratarei de descascá-la aqui, com um leve arrepio na espinha e muita dificuldade de recordar a fluência com que passeávamos por tantos labirintos simultâneos, com o fio de Ariadne que nos oferecia a nossa condição de “membros”. Proust acreditava que o passado residia nos objetos.
Que a laranja me faça as vezes da “Madeleine” no chá que trouxe toda a infância do escritor, em Combray. E eu os conduzirei pelas andanças de um outro objeto, por corpos, por lugares e por instâncias vertiginosas entre tânatos e o que tínhamos de Eros.
Ela e eu nos sentamos de frente um para o outro com as pernas abertas ao modo de sempre. Entre as dela, duas sedinhas, uma pro “digestivo”, outra para envolver um camafeu microscópico preso à argola de um piercing. “O passado (apontei para o pão), o presente (para o baseado) e. o futuro?” Uuuuu...
Acho que não vai acreditar, falou arrastado, envolvendo a peça insólita com a sedinha e erguendo o polegar esquerdo enfiado até a metade da laranja cuja casca rompeu por cima, sem ferir os gomos. Imagina o que se pode esconder entre estas suculências cítricas, como se cravasse na rocha...e dissolvesse, assim...
Eu perdi a seqüência dos movimentos ao desviar o olhar para o trote nada abstrato das ancas e peitos de Luciana que se aproximava explodindo em sol, transpiração banhada e aromas de cânfora, rangidos de calçados aquáticos e mais a volúpia animada pela convicção de trepar comigo, depois do almoço, como gostava. Era a hora do nosso itinerário pelos recantos preguiçosos do campus pós-prandial, entre laboratórios de Física, abandonados- “Bom, eu já curto endorfinas e coisas parecidas, assim, viagem de pele, sem maldade. O que rola com os de ervas, to trocando por serotonina e toda dopamina da minha lata mesmo, ô caras, sai dessa!”.
“Aceite esta laranja aqui, Luciana, vem, a gente caminha pelo fumódromo e então vai me contando como curte o cara, sem maldade...” Afastaram-se, e eu fiquei vendo quase mudo como uma lentificava a outra, enquanto se dissolvia o enigma da fruta, com um camafeu preso ao piercing metido pelas estranhas. Piercing de língua. A propósito, a Roxane pesquisava línguas nativas de tribos não aculturadas. A tarde passou. Manhã seguinte, depois do intervalo, a notícia corre: morreu de congestão! Comeu carne e foi pra piscina, já era, a gostosona...Uma tragédia, coisa horrível de ver, enrolou a língua, ficou roxa roxa, ta estendida no lava-pé esperando a enfermaria, mas já foi, todo mundo acha, choradeira, que morte estúpida, coisa besta...as amigas querendo nem ver, a fruta no chão... O frio na espinha veio com minha manobra bem sucedida que, num vacilo dos para-médicos, logrou retirar-lhe o piercing da língua e, mais tarde, arremessá-lo ao lago central do fumódromo, na ala sul. Não me perguntem a razão. É muito cedo ainda. Um impulso... de protegê-la, talvez. Até hoje não sei. Nas semanas seguintes, quando a observava de longe, sentada, catatônica, fitando a pouca profundidade do laguinho, na ala sul-oposta à saída do bandejão, ficava sem pensar. Ela, sem textos nem pretexto; sem pão nem laranja. Parecia encantada. E estava.
E eu estaria assim, até agora, se um varredor que me espiava enquanto eu olhava Roxani espiando o lago, se ele não tivesse comentado que ela deu em cima do Jonas, naquela semana em que o funcionário achara uma jóia no laguinho. Devia de ser valorosa, pois se a branquela do lago num tava maluquinha, querendo até pagar o menino!? E o cara, perguntei, ué, pois num sumiu do laboratório, daqui, do mundão? “De primero ele queria avaliar direitinho a coisa, depois voltou pra cá numa sengraceza, falando que devolvia, mas comia ela antes, a moça. Pegaram os dois nuínho na Física, ela enrolava ele com fibra ótica, que ele tava todo marcado. Pois num sumiu objeto... prisma, os avental, umas chave também! E ele também, ué, e ela fica aí olhando pro nada dele”.
Pois agora digo eu- não é que, no dia da laranja estuprada pelo dedão dela enfiado, o normal não teria sido eu ter arrastado a gostosona da Educação Física para o laboratório de Física e , ao modo de sempre, esquadrinhá-la com filetes de fibra ótica! E depois caminharmos, nus sob os jalecos, pelas espirais do Observatório a Olho Nu (às vezes, nem dava tempo de chegar a Lua e outros astros que poderíamos contemplar, luze e lume agora mesmo, Luciana, fosforesce por baixo do tecido branco e arreganha luz no meio do meio da tarde ociosa do campus pisoteando os chapados, as chapadas e as obscuridades todas, chupa agora Luciana, chupa enquanto eu peno as chaves pra despistar esses delitos, chupa a obscuridade de todo conhecer!). Nunca ninguém mais achou o prisma.
Mas...se não acharam nunca mais também o Jonas, quem era eu pra chegar na moça, encantada, e perguntar. Perguntar de quê? Ousaria descobrir como teria reproduzido a minha delirança toda com quem luzia, enquanto ela se enterrava nos próprios gomos a fundo, sem anjo-da-guarda (Ó!) e, agora, tadinha...sem um camafeu?
Uuuuu...
10 comentários:
Conto curto que inaugurou a seção "Painel Literáio" do site www.guiadeconcursosliterárois.com.br e construído em torno das "1000" palavras que caracterizariam um "flasch-ficcion" na tradição das narrativas breves.
Comentários de Rodolfo Dourado Maia(oficina literária TURMA3(www.turma3cpfl.yahoo.com.br)assinalados no próprio corpo do texto, incluindo minhas respectivas respostas:Acessar o blog onde o link foi postado em 08/08/06. Referência postagem:
Marco e Turmeiros,
Tomei a liberdade de copiar abaixo algumas das
conversas em off que tive com o Marco, depois de
autorizado por ele (com firma reconhecida nas duas
vias), para poderem entender um pouco sobre o recurso
de se fazer comentários diretamente nos textos em
word.
Em anexo mando o texto "Camafeu" do Marco com os meus
comentários e com as respostas do Marco a eles.
Para inserir um comentário num texto do Word, é
simples: marque o trecho ao qual se quer referir com o
cursor, vá em Inserir e em seguida Comentário. Depois,
é só escrever.
Marco, ainda não respondi seus comentários. Mas muito
loucos... O lance dos conceitos (A, B, I...) foi sob
efeito do recheio de uma seda...
Para mim essas coisas não são triviais, pelo
contrário. Eu me pergunto às vezes se determinadas
coisas não chegam a ser preciosismo (ou minha própria
profunda ignorância). Mas veja bem: se para o autor
isso faz todo o sentido, faz parte do projeto, se te
faz se sentir bem com o seu texto, mesmo que ninguém
entenda, foda-se todo mundo.
Minha resposta à iniciativa metodológica de Rodolfo Dourado Maia Gomes na abordagem do conto:
> Muito legal esse recurso que vc usou. Ao contrário
> da idéia de "macular" o
> texto, revela um profundo respeito por ele e por si
> próprio, enquanto
> leitor. Trata-se de uma leitura pontual que vai
> buscar todas as referências,
> as ferramentas, os subtextos...o cascalho de que é
> feita a peça. Eu não o
> "explicaria" se quizesse fazer do patrimônio
> lingüistico, aberto, um truque
> mesquinho de hermetismo esnobe. E por respeito à
> leitura atenta (que, isso
> sim, me envaidece), lá vai, ponto por ponto. Antes,
> como boa parte do
> "projeto" desse conto (meu primeiro conto curto!)
> está calcada na Lição
> II-"Rapidez". do I. Calvino nas "Seis Propostas Para
> o Próximo Milênio", eu
> lhe proponho dar uma olhadela, se conseguir, no que
> este escritor, do alto
> de seus 40 anos de literatura, diz sobre a
> velocidade de um conto, quando se
> faz "circular" por entre personagens, lugares,
> circunstâncias, etc., algum
> objeto. Isso vem dos tempos imemoriais da narrativa
> oral. Tem algo de
> xamânico. E explica o piercing e que chamou de
> "curso temporal",
> acertadamente. Já rascunhei respostas rápidas e
> diretas e vou passá-las logo
> que puder. Primeiro, se ficou a meu critério (e lhe
> agradeço esta
> elegância), pode postar no Grupo e, então, eu envio
> pra lá. É por causa da
> importância do recurso de anotar no próprio texto!
> Acho que é uma
> metodologia muito franca e rica, que poderá
> potencializar todas as análises
> de textos entre a tigrada. Eu, se tiver metade da
> sua dedicação e paciência,
> irei usá-la sempre que for o caso. Valeu, cara!
> Aguardo.
> Abraço e bota no ventilador!
Li o conto e o poema. Bom, eu gostei mais do conto. Algo erótico, não vulgar, que desperta para um monte de coisas implícitas que, se fossem escritas de forma mais descaradas, não apareceriam. Entende? É como se houvesse sempre uma sugestão por trás, sugestão que se capta pelo trabalho do leitor, o autor não fecha o texto.O leitor tem o trabalho de conferir o sentido. Quase como uma intervenção terapêutica, não? De qualquer forma, adorei principalmente o fascínio do personagem, fascínio que se prende por detalhes de onde se desprende o mundo, fascínio que perpassa a mera admiração , digamos, "objetiva" pela personagem, a mera fascinação pelo físico. Não, o contrário: parte do físico, mas não pelo físico evidente. Imagino que seja um personagem capaz de se apaixonar pela simples visão de um dente, de uma unha, de um sinal, de onde tenta apreender toda uma "gestalt" que no entanto nunca se cumpre (eminência de cumprir, só eminência....)Sabe, uma coisa meio dostoiévski de capturar algo pequeno, a principio irrelevante, ou mesmo feio, desengonçado e repugnante, e adorar toda essa degradação e ver beleza na coisa. A coisa da laranja, o valor da laranja, laranja que é feia, pão murcho, num lugar onde só poderia haver um pão murcho e nunca um pão saído na hora; não é de certa forma uma anunciação de uma desgraça? E só pq tudo no fundo é uma desgraça - é que faz sentido falar, pra conjurar tudo; fascínio pra conjurar desgraça.
Bom, acho que talvez eu tenha viajado um pouco; vou reler com calma o conto (gostei muito mesmo) Tem uma coisa de associação livre, me lembra nelson rodrigues.
Bom, não li Barthes, e vc já é a segunda pessoa nessa semana que me fala sobre ele (o detalhe é que antes ninguém me falara,e penso no que em mim leva, nesse momento, que duas pessoas me sugiram este autor)Enfim, depois dessa, vou procurar alguma coisa (assim que acabar de resolver meu projeto de mestrado-olha que legal, já consegui orientador e tudo, Gilvan Fogel, conhece??) . Fico devendo o entendimento sobre o prendedor, mas encaro desde já como algo enlevante.
Beijos,
Priscila ViannaEsta mensagem foi enviada por Priscila Vianna. Para ver o perfil de Priscila, clique em: http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=4065304730000597220
Eustáquio Gomes para mim
Mais opções 30 Ago
Marco, obrigado. Vou acionar o gmail. Gostei muito do "Camafeu". É um conto
que requer mais de uma leitura. E o ponto alto é a linguagem. Depois escrevo
com mais calma sobre ele. Abraço
Eustáquio
Eustáquio Gomes para mim
Mais opções 30 Ago
Marco, obrigado. Vou acionar o gmail. Gostei muito do "Camafeu". É um conto
que requer mais de uma leitura. E o ponto alto é a linguagem. Depois escrevo
com mais calma sobre ele. Abraço
Eustáquio
Caro Marco Antonio, o mesmo cuidado formal que notei no seu
poema (primeiro encontro da oficina) e na sua crônica (revista)
reaparece agora nesse "Camafeu". Não foi à toa que a atenção
do teu narrador parou na ginga e na bossa de Luciana e Roxane.
Caramba, essas garotas atiçam a imaginação de quarentões
como eu. Teu conto capturou a atmosfera libidinosa dos campi.
Não li o livro, mas soube que o Tom Wolfe acumulou muita prata
tratando do mesmo tema, com seu "Eu sou Charlotte Simmons".
Bobagem do novo jornalismo. Aposto que do ponto de vista
literário teu conto é muito melhor.
Um abraço,
Nelson
Caro Marco Antonio, o mesmo cuidado formal que notei no seu
poema (primeiro encontro da oficina) e na sua crônica (revista)
reaparece agora nesse "Camafeu". Não foi à toa que a atenção
do teu narrador parou na ginga e na bossa de Luciana e Roxane.
Caramba, essas garotas atiçam a imaginação de quarentões
como eu. Teu conto capturou a atmosfera libidinosa dos campi.
Não li o livro, mas soube que o Tom Wolfe acumulou muita prata
tratando do mesmo tema, com seu "Eu sou Charlotte Simmons".
Bobagem do novo jornalismo. Aposto que do ponto de vista
literário teu conto é muito melhor.
Um abraço,
Nelson
{Do site "Recanto das Letras")
Marco Antônio,adorei seu condensado texto,de uma imagética fabulosa,de personagens ricos em detalhes,brinda-nos com tua maravilhosa obra.Abraços recantistas,sejas bem vindo ao Recanto,Amapholla.
Enviado por Amapholla em 24/05/2007 23:18
para o texto: "Camafeu" (T498943)
O garanhão, psico de "histórias", pegando meninas calouras, e homenageando a amante. Espertezas. Passam-se os anos, mudam as amantes. Os contos??? Bem, "acho que Vi", mas não... Tudo ilusão... Tiricas pra passar o tempo.
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